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  • Walter Franco, osso & tutano

    Meu primeiro contato com a música de Walter Franco ocorreu num começo de noite de domingo no bairro do Bixiga em São Paulo em 1976 ou 77. Walter estava fazendo um show no antigo Teatro Aquarius, depois Zaccaro, e hoje, fechado. Foi uma revelação. Pela primeira vez percebi do que se tratava o uso de eletrônica de forma criativa na música, não apenas como um amplificador de volume. Para um adolescente vivendo no ambiente repressivo da ditadura militar, aquilo era um jorro de liberdade. Ousadíssimo. Walter Franco utilizava duas baterias e um arsenal de efeitos como reverbers, delays, que transformavam o som da voz, por exemplo, num abismo de sonoridades originais. Cantava e fazia soar a garganta como uma orquestra de sons diversificados. O volume também era usado criativamente. Se não me engano, o Pena Schmidt era o técnico de som responsável. Acho que foi depois (ou pouco antes) do antológico show do Teatro Apa, no centro. Um show de formação que me marcou para sempre. O repertório devia conter músicas do álbum da mosca e de Revolver. Anos depois gravei em 1988 um LP no legendário estúdio Eldorado, e me lembro de estar emocionado em utilizar o mesmo estúdio de Revolver. Acho que foi em 1979 que tive a oportunidade de presenciar no Teatro da FGV, a primeira apresentação de Canalha, um soco no estomago. Música de um Walter Franco que dialogava com toda a revolta do punk daquele momento. Já nos anos de 1990, como colaborador da revista de rock BIZZ escrevi um artigo sobre o magnifico REVOLVER (1978), como o disco de uma ideal discoteca básica. O artigo motivou a gravadora de Walter a reeditar seus álbuns, o que foi sensacional. Encontro depois Walter, grato, por esse alô e finalmente travamos um contato pessoal. a mítica capa do álbum Revolver em foto de Mario Luiz Thompson Sempre extremamente profundo na formulação de ideias sobre som e música nossos encontros eram sobre projetos possíveis que realizaríamos, sempre focados em criação. Descubro, ao realizar uma nova montagem, em 2006, de Bailado do Deus Morto (1933) de Flávio de Carvalho, que ele, o próprio Walter, havia participado, nos anos de 1960, de uma reencenação da peça com participação do próprio Flávio na EAD. Diogo Franco, filho de Walter e músico, participou dessa remontagem que fiz no começo dos anos 2000. Uma coincidência de interesses que atravessava décadas. Ainda no inicio dos 2000, Walter me convida a gravar o clarone de uma nova versão de Cabeça no CD Tutano. Uma versão com muita improvisação. Em 2003, convidei Walter a colaborar no projeto 24 Óperas Por Dia, com uma composição sobre usura. A música é incrível, com aquela concisão de melodia & letra inigualáveis. O input para o Walter foi o canto sobre usura de Ezra Pound. A música continua inédita em gravação. O espetáculo foi apresentado em unidades do SESC e na abertura do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto. A música de Walter Franco atravessa a minha trajetória musical desde muito tempo, e a quem sempre recorro quando me lanço a escrever algo parecido com uma canção. Walter alargou esse universo, encapsulando-o, paradoxalmente. Dele brota o tutano, seiva oculta, envolvida pela dura casca do osso. Essa analogia é pertinente, se considerarmos o pêndulo de suas criações do lirismo minimalista ao grito primal. Livio Tragtenberg é compositor e instrumentista fotos do "osso & tutano" e de Livio Tragtenberg por Walter Antunes

  • Os corpos das mulheres negras e a ironia do Brasil contado por Machado

    Estátua da cabeça de Luís Gama, advogado negro que lutou pela abolição da escravidão no Brasil da segunda metade do século XIX. Largo do Arouche, São Paulo, Brasil. Em três contos de Machado de Assis os corpos das mulheres negras aparecem como o elemento social representativo da força nacional de subjugação colonial escravista. Lucrécia em O CASO DA VARA, Arminda em PAI CONTRA MÃE e Mariana em MARIANA. Esse aparecimento revela a pessoa negra oprimida e massacrada justamente naqueles traços que fariam dela uma pessoa e não uma máquina, um objeto, um animal útil de pertencimento ao aparato do trabalho doméstico ou então um bicho de estimação âncora de afeto fácil. A pessoalidade humana é suprimida de Lucrécia, proibida de participar de uma conversa e rir, de Arminda dar à luz um filho e de Mariana amar. Trata-se, pontualmente, da negação da intelectualidade, da maternidade e do amor, direcionada à mulher negra como uma arma apontada para a cabeça do condenado. Ao traçar quadros literários dessas negações Machado de Assis aponta para o sentido de horror contido na percepção de uma cultura específica, imposta por uma estrutura social profundamente criminosa, caracterizada por uma brutalidade banal e difusa, qual seja, a brutalidade sobre a qual se fundamenta a organização do estado brasileiro desde seus inícios, prolongando-se até hoje. A ironia do Machado é a ironia do Brasil. As definições correntes para essa famosa figura de linguagem machadiana devem se estender por entre uma visão polidimensional da obra. Ela aparece em todos os pontos do jogo de contrastes das composições. Do ponto de vista moral é tratado aqui o contraste entre a potência de amar, realçada pela figura da mulher escravizada mas entrevista nos traços de todas as outras personagens, e a violência sistemática do arranjo social, realçada pela figura dos pares masculinos brancos: Damião, Cândido e Coutinho, ausente, no entanto, das figuras das mulheres negras; presente novamente nas figuras das mulheres brancas: Rita, Clara e Amélia. Moralmente é um contraste entre Cristo - as mulheres negras, ou Marias-Marianas, Nossas Senhoras Aparecidas - e Pôncio Pilatos lavando as mãos com a sua turma de césares, filisteus, fariseus e judas no backstage simbólico-religioso da sustentação da sociedade da colônia. A potência de amar, tão bonita enquanto encarnada na mulher negra, sofre então uma caçada em cada um dos contos, a qual, com ares de aproximação sexual - portanto prosaicamente justificável diante da vaga promessa do florescimento do amor-, revela-se apenas a pura caçada fascista de sempre: caça-se para castigar com a vara, para capturar a escrava como um serviço devido a um senhor rico (até mesmo à custa do aborto de um feto de criança negra) e caça-se para recuperar a mulher-bicho de estimação da casa. A potência de morte, tão aparentemente medíocre, encarnada no homem branco burguês, não haverá de ser confundida aqui com amor, pois que o substitui por desejos recalcados, ações egoístas e caprichos típicos de vidas que, todos sabem, caracterizam-se sobremaneiramente por apresentarem-se cheias de miríades de desatenções e desfazeres. Desatenções essas que fazem do Brasil essa colônia tão agradável, simpática e rica, capaz de sustentar nas conversas de seus salões e redações da pouca imprensa, o negro escritor, Machado. MARIANA apresenta bem nítido o contraste entre o romantismo da personagem Mariana e o naturalismo prosaico das personagens narradoras encarnadas em Macedo e Coutinho. Esses dois poderiam ser, hoje em dia, quaisquer um dentre os homens brancos burgueses, portadores da indefectível personalidade cínica de classe média. E obviamente, coerentemente com o realismo do estilo machadiano, são justamente esses que narram e descrevem Mariana. Num híbrido de tons evocantes de coisas como Dom Quixote e Madame Bovary, forja-se o recurso estilístico de sustentação do patético: o patético amor da escrava Mariana - com seu nome vindo de Maria mãe de Jesus - a Mariana, mulatinha, cria da casa, tratada como filha enquanto submetida de bom grado ao cativeiro e tratada como escrava institucionalizada quando tenta se libertar do cativeiro. A construção da aura de deslocamento, desarmonia, enfim da impropriedade de um amor puro e verdadeiro sendo suavemente aviltado, no contexto do narrador, como um caso de romantismo ingênuo mas que, enfim, cabe na história do coração de um homem tristemente comum naquele espacinho reservado para as pequenas verdades de sua pequena vida. É a vitória da mediocridade burguesa reivindicando seu direito de pequena proprietária performatizando o contraste de sua inerente brutalidade, mesquinhez e vulgaridade, em relação ao sonho de beleza, amor, potência e promessa de Mariana. A profundidade da mediocridade brasileira no Coutinho e a profundidade do romantismo de Mariana em contraste: a ironia de Machado é a ironia do Brasil. Os capazes de amar, no Brasil, são aqueles com raízes nos negros - e nos índios, atestariam depois Glauber Rocha, Caetano Veloso, tantos e tantos outros, etc. - os únicos talvez com a potência desse amor total e sublime de Mariana. Se há ideia de violência impingida através da figura negra, ela é transfigurada pelo significado de um amor profundo e selvagem - condizente com a tradicional composição imaginativa quanto à forma étnica brasileira: como as "raízes" de uma planta forte. Claro, nota-se também que muito da graça literária de Mariana está na descrição de maneirismos dos gestos "ocultistas" daqueles sentimentos amorosos típicos das paixões juvenis: e isso é também ironia. Enfim uma escravidão prestes a terminar e um não-futuro pela frente às personagens escravizadas. Não têm espaço no "mundo" brasileiro para as negras dos três contos: a jovem não terá no futuro um lugar, a mãe verá seu filho abortado, e Mariana... morrerá pelas próprias mãos. Realmente não há vestígios de liberdade nesse estado de coisas. Não há anteparo social para o desenvolvimento do amor. Em 2022 faz quatro anos que a vereadora carioca, negra, Marielle Franco, foi assassinada e ainda não se encontra quem a mandou matar. Machado de Assis publicou os contos O CASO DA VARA, PAI CONTRA MÃE e MARIANA em diferentes datas e suportes - periódicos e livros - no Rio de Janeiro do Brasil entre os anos de 1871 e 1906. Foto da Estátua da cabeça de Luís Gama : Walter Antunes Agradecimentos a Walter Antunes, Léo Daniel da Conceição Silva, Soraima Moreira, Jeiciane Soares da Silva Bispo, Francivaldo Souza da Silva e a todos os participantes do Círculo Literário de CiberLeitura, projeto de extensão do curso de Letras da Universidade Estadual do Tocantins-Unitins, em especial aos que se reuniram para conversar sobre os contos "O caso da vara", "Pai contra mãe" e "Mariana", de Machado de Assis, no dia 12 de Março de 2022.

  • Sobre o ultrapassamento da guerra

    Depois de algum tempo sem se encontrarem Walker Dante e Roselena conversam, inevitavelmente, sobre a guerra... Walker Dante - Você tem certeza de que quer falar sobre guerra depois desse tempo todo sem conversarmos? Você sabe, nosso discurso estará se somando, engrossando esse caldo que ele mesmo gostaria que desaparecesse da face da terra. E outra coisa: a tentativa de comunicação de um assunto complicado nessa nossa época cibernética é sempre uma coisa estranha. É que agora confunde-se "comunicação" com o fato das pessoas terem telas, câmeras e microfones às suas frentes o tempo todo. Roselena - Sim, não é fácil sustentar a contemplação das imagens da guerra. Walker Dante - Não se trata de contemplar, a guerra simplesmente se interpõe frente aos nossos olhos. Roselena - Sim, e há ainda aqueles que, desesperados, nos cobram a contemplação sistemática de todas as guerras porque temos dado importância apenas a uma, e isso revela a superficialidade e a mesquinhez dos nosso próprios sentimentos profundos, e daquela nossa vulgaridade, aquela que nos distancia do ideal do homem universal. Walker Dante - Há essa moralidade calcada nos argumentos da legalidade iluminista, enfim a base do sistema civilizado que temos o dever de sustentar - pois que somos isso - própria da expressão dos espíritos cultos. Ocorre que discursos contendo apenas esse tipo de coisa enfraquecem rapidamente após surgirem porque exprimem um investimento de energia numa visão de mundo flagrantemente parcial, qual seja, a parcialidade da pretensão da inteligência intelectual destituída de corpo e de emoções. As opiniões sentimentais tendem a ser mais exatas. Roselena - E há ainda aquilo sobre o que Simone Weil alerta: "Odiamos as pessoas que gostariam de nos levar a formar relações que não queremos formar". E, olha, ela diz isso naquele texto "O anel de Giges", em que um pouco antes diz: "Um dono de fábrica. Tenho estas e aquelas satisfações dispendiosas e meus operários sofrem a miséria. Ele pode muito sinceramente ter piedade de seus operários e não formar a relação". Walker Dante - ... é, há tanta coisa. Roselena - O fascínio de grande parte das pessoas pela ostentação do máximo de enormidade de poderio bélico é um fato real que geralmente tenta-se enfrentar contrapondo um argumento sobre a ilusão que esse fascínio consiste. Trata-se de um fenômeno análogo ao fascínio do pássaro prestes a ser comido pela cobra que o "hipnotiza", paralisando-o. É uma fase da entrega que aparece como antecipação da entrega total, de modo que, de fora, tende-se a achar que "o pior pode ser evitado", ou que é possível um despertar da consciência do elemento que se encontra fascinado. Essa qualidade da alma, qual seja, a da suscetibilidade ao fascínio da força de morte está na base - junto com outros elementos - da estruturação do senhor da guerra, desse sujeito que toma para si a proposição da guerra. Essa tomada de posição libera a massa do gênero humano da responsabilidade sobre a guerra e o senhor é coroado, materializado, e realizado sobre essa energia. As metafísicas que versam, ao longo dos séculos, sobre o ilusionismo contido na ideia de existência do sujeito não serviram até agora para eliminar as possibilidades da guerra e de todos os fenômenos aparentemente irracionais que podem ser entrevistos de forma nítida pela abordagem platônica clássica expressa aqui nessa minha fala. Há sempre um senhor da guerra e outros senhores que jogam com ele essa rodada. Uma guerra é sempre interesse particular de um chefe. Abundarão peças estéticas sobre o soldado desmoralizado. Walker Dante - Essa ostentação tem a ver agora também com a intencional propagação dos movimentos fascistas, financiados pelos senhores da guerra. Além disso provavelmente a beleza desse fascínio, a beleza do guerreiro, seja o elemento necessário à viabilização da contemplação das imagens da guerra. Contempla-se a morte apenas através de seus disfarces a despeito, é claro, da proliferação cibernética de fotografias e vídeos reais sobre eventos outrora inimagináveis de serem representados com tanto despudoramento. Mas o profissional da guerra, o mandatário, o rico, o tirano… ninguém imagina realmente o quanto essas pessoas se acham superiores, possuidoras, controladoras de alguma macro-situação, ninguém imagina o grau de certeza que sustenta essas personalidades. São pessoas sem "fragilidades". Ah, como todos os fascistas do mundo se admiram reverencialmente, se espantam, se exaltam, se congratulam e explodem em contentamento ao contemplar os senhores da guerra! Obviamente isso acontece porque a identificação é impulsionada justamente pelo saber oculto de seu contrário: no fundo a pessoa comum sabe que é de uma espécie muito diferente dessa outra, dos poderosos. Roselena - Sim, diante dessa guerra da Rússia contra a Ucrânia podemos observar todos os matizes de combinação psíquica dos interativistas nas redes sociais cibernéticas em monótonas ou excitantes variações (dependendo do estado dos sujeitos). O comunista stanilista declarando amor e entusiasmo por Putin e os fascistas brasileiros, idem; o cristão religioso pedindo por oração ao povo ucraniano; os filósofos críticos irremediavelmente cínicos porque sempre burgueses, apontando o caráter de jogo de torcedores de arquibancada entre dois "times"; os intelectuais descrevendo a conjuntura das implicações da OTAN e dos EUA na promoção da guerra; os herméticos explicando que as partes antagônicas são estruturalmente associadas. E o fato ou o acontecimento está aí, se apresentando como um fenômeno em si, com a grandeza de tudo o que se torna autônomo, repousando em suas expectativas do sentido, as quais proliferam, se expandem e se consolidam: a guerra como essa breve flor da civilização, com seus frutos rápidos, vindos em seguida aos primeiros choques. Walker Dante - Vou pegar o seu gancho sobre as flores e frutos. A minha moralidade, você sabe, sempre desconfia do porto da legalidade. Apenas porque sou cristão digo sem medo de errar que as pessoas que apoiam uma guerra, mesmo que com seus pequenos discursos de papagaio de rua, são imorais. A dimensão intrínseca do discurso é só mais uma arma entre as outras, na guerra. Encontrar no discurso uma justificativa para a guerra, essa é uma das faces da despudorada imoralidade que, a serviço da guerra, funciona de maneira peculiar: como arma difusa e disfarçada, subitamente o discurso se mostra deslocado de sua funcionalidade tática, confinando-se a si próprio como fenômeno exclusivo da "área do discurso", uma espécie de área neutra, imaterial, fazendo-se com isso incidir mais profundamente os sentidos da guerra nessa estrutura motivacional do "fascínio" pela guerra. Em suma, nada na guerra é honesto. Esses dias encontrei um papagaio fascista empunhando a Torá, defendendo o direito russo à guerra, dizendo que o Cristo veio bagunçar tudo para fomentar a discórdia no mundo. Escandalizei. Roselena - É isso, todas as combinações entre cacos e estilhaços são possíveis. Artistas trabalhando com materiais não-artísticos já mostraram isso (artistas ativistas do meio-ambiente fazem obras com a lama da barragem rompida, com óleo vazado nos oceanos ou então compõem retratos com caviar, lembra do Vik Muniz?). Nesse sentido é interessante perceber como a guerra se furta a ser apreendida como algo banal. Uma posição, uma opinião é exigida, de forma que não levá-la a sério é ser ingênuo. De fato a inerente impotência das pessoas as fazem refluir para a condição íntima e mágica de seus pensamentos - na verdade imaginações - sobre a guerra, num livramento de consciência típico de animais conformados com a vida na antessala do abatedouro. A política brasileira quanto à guerra segue um estilo, arrisco dizer, próximo ao estilo africano, moçambicano, angolano, etc.; simplesmente resigna-se à guerra; gente abunda, é como "mosca", não se tem outra solução. Desculpe a digressão. É que as pessoas não parecem carregar marcas corporais que as identifiquem como agentes da guerra, no sentido de associarem a sua corporalidade material em toda a dimensão existencial possível, à causa da guerra. Parecem participar, na maioria das vezes, apenas como pobres seres que inflamam seus corações e mentes na fruição das imagens do poder, assim se irmanam com os que estão realmente levando as bombas na cabeça, tendo tudo à volta inteiramente devastado. Como o pobre povo desobedecerá grandes generais? A autoridade se impõe flamejante e estrondosa em seus brilhos cruéis. Walker Dante - A velha guerra em novos tempos. Pense que hoje em dia todos os jovens do mundo brincam jogos de computador globalizados ansiando por estrearem de verdade na "arte" da guerra. Roselena - Desesperador. Geralmente a palavra jogo tende a reduzir indevidamente e perigosamente o sentido da guerra. Por exemplo: aquele que é acostumado a jogar futebol comparar-se-lhe-á com o futebol; aquele acostumado aos jogos corporativos de fases tende a vê-la dessa forma, vão "administrando" um modo de existir; os iluministas legalistas apontam suas origens históricas; o Sun Tzu oferece um mapa popular básico; tem gente que refere-se ainda a um jogo famoso de tabuleiro, pré-computador, com esse nome, "guerra", em inglês e claro. Walker Dante - Isso me fez lembrar do pensamento de Wittgenstein e da ideia de "família" nos jogos de linguagem. De entre todos esses sistemas de regras, de todas essas famílias de jogos de linguagem, depreende-se que a guerra, ao contrário do que parece, gaba-se de ser uma expressão da razão em sua expressão prática; uma guerra nunca almeja esboroar o extremo, mas sim ocupar o máximo de espaço dentro de limites. Os antropólogos explicam os fundamentos da guerra como fenômeno intrínseco à forma da espécie, e nossa espécie é racional: é a espécie da linguagem. Claro que a guerra parece ser, e é, inerentemente um ultrapassamento de limites sob o ponto de vista de quem é atacado. É nesse sentido que a guerra é realmente perigosa. É sim, possível, o lançamento das bombas atômicas porque os comandantes da guerra, dentro de seus limites racionais, perceberão que é vantajoso jogar a bomba dentro do contexto de um momento tático do seu jogo. Roselena - E é nessa perspectiva redutora de "jogo", que a guerra apresenta-se sempre de forma a dar a perceber seus princípios como coisas simples e esquemáticas. Todos sabem que se trata de uma guerra quando há uma guerra. E o que poderia ser o simples senão uma compreensão baseada na exemplificação dos próprios sentimentos íntimos e atitudes pessoais que simbolizam a guerra a todo instante? A guerra é o resultado do egoísmo, com seus dinheiros, poderios sobre gentes, privilégio com relação ao controle das mortes, sua peculiar estética e disputas sobre essas coisas. Nada muito mais que isso. Nesse sentido a guerra não é bem um jogo de linguagem, mas sim um jogo conducente à ideia de fim da linguagem. O fim do mundo há muito é propriedade dos estados e das pessoas mais fortes e ricas do planeta. E se as guerras, como metáforas, normalmente se apresentam como guerras rituais e virtuais, servindo a algum propósito neurótico, de entretenimento ou de mecânica da banalidade cultural, isso apenas mostra que elas são reais. Assim, a atualização ocorre, infalivelmente, como com tudo o que é real. Ela ocorre como um direito. Porém, como com todo o poder, dinheiros, mandonices e egoísmos, é atualidade para poucos, à medida que seus senhores se esforçam por distribuí-la para o máximo de pessoas. Seus confins são o seu discurso e suas disseminações são ecoantes. O povo pobre brasileiro, por exemplo, vai sofrer ainda mais com a inflação, desemprego, etc. por causa da guerra na Europa. Walter Dante - É verdade, o povo já familiarizado... acho que não existe nenhum brasileiro que não seja vítima de extorsão de alguma "máfia" poderosa, seja em que nível for, família, serviço público, um bandido na rua, ou a milícia do bairro. Há valentões por todos os lados. Estamos cercados de guerra. Quem não faz guerra? Ai, essa palavra guerra, tão profusamente utilizada como metáfora de eficiência e força em tantos níveis cotidianos e existenciais ao longo das eras. Ah, o valor que tem o poder criativo da guerra que, num período bem menor de tempo, pela destruição, cria muitas mudanças em comparação com os longos períodos de construção, necessários em tempos de paz (tempos calmos e alegres). A guerra cria fome, desespero, uma variedade grande de formas de sofrimento físico, emocional, mental e social. A guerra muda tudo. Todos os adolescentes amam simular o poder de matar em seus jogos planetários pelo computador. Isso é coisa mais que sabida, batida, debatida. Trata-se da guerra como horizonte do possível, como depreendemos da tese da guerra pura do Virilio: a própria civilização, com suas cidades, é feita de acampamentos permanentes de guerra, com seus senhores permanentemente guerreando, seja de forma semi-oculta ou ostensivamente às massas. E parece que do ponto de vista dos senhores da guerra muitas vezes a sua eclosão ostensiva pode ser explicada de maneira simples e crua como uma boa ideia para se gastar o "excedente humano" das estruturas capitalistas. Essa é a natureza horrorosa do fascismo, a ideia de que a morte, sobretudo de vidas individuais da mesma espécie, seja uma espécie de higiene. Obviamente que as outras formas de vida não são consideradas propriamente como "vivas". São coisas inertes, portanto não se atribui poder de culpa a elas. Assim o fascismo sustenta o racismo porque, pelo racismo, pode-se alinhar seres humanos "ao que não é humano", portanto ao que já está morto. A guerra pura assenta-se na visão do morto como tesouro. Roselena - Então... mas a despeito de toda a sua estética da morte a guerra é também associada à riqueza porque ao firmar-se, apresenta-se acompanhada de discurso, o que a legitima fenomenologicamente. À inerente positividade do fenômeno (qualquer um, posto que é sempre existente) é justamente o que estamos acostumados associar a ideia de vida. Mas a vida é, fundamentalmente, "riqueza" (multiplicidade de elementos dispostos à ordenação cósmica). Nesse sentido é rompida, com a guerra, a percepção da harmonia característica da positividade existencial e, em seu lugar, instala-se a falta, o sofrimento, a ferida, o buraco, a morte, enfim, o brusco atentado direto contra a vida que é, não obstante, construído discursivamente como uma positividade. Essa força "contra a vida", o que será? Por aí se vão múltiplas metafísicas a gastarem as energias do presente em fumaças. Porém uma visão de mundo sempre é possível. Alguns dizem que ele está acabando, outros começando, e tem alguns que dizem que o mundo está no meio de sua jornada existencial. Nesse ínterim, a distância com relação a "ver o mundo" engendra um tipo particular de paisagem: a do deserto. Tem sido essa a imagem preferida de muitos. Walter Dante - Pois é... temos de levar a guerra a sério ou fazer picadinho dela, pois depois de deflagrada, nada mais é inteiro: não é à toa que no plano do discurso as palavras contrárias são utilizadas para mascarar sua realidade material: exércitos são denominados forças de paz; uma conquista é defendida como necessária para a reunião da inteireza perdida; um argumento revela que a guerra constitui-se de uma reação a uma provocação feita de quebra de regras do jogo que vinha sendo jogado; os noticiários nomeiam as pessoas massacradas de "cidadãos", etc. Ou seja, a mais rasa "novilíngua" invade o campo das expressões que se propagandeiam. O discurso da guerra é esquemático ao máximo e não deve ocupar demasiado espaço porque o número de jogadores desse específico e perigoso jogo é reduzido, e isso é o seu valor. Poucas e precisas palavras e muitas bombas e exércitos é a condição ideal dos grandes senhores da guerra. Roselena - ... então se é linguagem ou o fim da linguagem... a guerra é uma linguagem tão completa que, por fim, se derrotados, não temos mais o que falar, ou não queremos, e aí sentimos que precisamos ficar tristes e mudos e se, sem alternativa, vemo-nos em meio a ela, percebemos horrivelmente que a guerra se faz, não se conversa.

  • Macaco Não É Valente

    Jackson do Pandeiro tem a metade da idade da Independência do Brasil, nasceu no 31 de Agosto. Quase da idade da República, esse Jackson. Cantou por todas as partes do Brasil, falou com sua música diretamente aos brasileiros, claro, com a astúcia de quem conhece as terras em que está pisando. Jackson sabe o lugar certo das coisas e que o momento um dia chega. Macaco não é valente Dança aí 17 na corrente Uma viagem que fiz pelo Amazonas Num arvoredo eu parei pra descansar Me jogaram uma pedra no lugar Eu olhei, não vi nada ali perto Com distância de 10 ou 12 metros Um guariba surgiu na minha frente Com coragem enfrentei o descontente Venci na luta e a ele eduquei Minha ordem pra ele é uma lei Dança aí 17 na corrente Macaco não é valente Dança aí 17 na corrente Tendo eu dominado este vivente Hoje ele vive amarrado pelo meio Eu trabalho com ele e não receio Dança aí 17 na corrente Macaco não é valente Dança aí 17 na corrente Ele hoje é bastante educado Fuma, toca e sabe até dançar Já faz pose e tem ginga no andar E conversa comigo por aceno Faz careta e fica se mordendo Se uma loura passar e não falar Ele diz que o dia é de azar E reclama por não estar decente Já não briga e respeita toda gente Dança aí 17 na corrente Macaco não é valente Dança aí 17 na corrente link para ver e ouvir o 17 na Corrente: Jackson do Pandeiro - 17 na Corrente

  • A potência das metamorfoses na prosa inventiva de Luiz Roberto Peel em “Zoodíaco Tocantino”

    O livro de Luiz Roberto Peel Furtado Oliveira, “Zoodíaco Tocantino: a epopeia ensaística de um povo inventivo”, diz que há dez signos zoodiacais pelo ponto de vista tocantino. Começando do zero, e indo até o nove, esse zoodíaco completa dez figuras em analogia assimétrica, inventada, às doze partes da “zona circular da esfera celeste” em que se estrutura o círculo de animais do zoodíaco grego, base dos signos astrológicos mais comuns, esses herméticos e populares oráculos, a partir dos quais traça-se os horóscopos, as marcas da ligação entre homens e estrelas, sinais do destino. A leitura dos signos zoodiacais geralmente pretende a compreensão do liame das distâncias e, no espaço que se faz entre elas, das formas infinitas dos desenhos das trajetórias, linhas e caminhos possíveis. “Dez cartografias formavam o caráter, a personalidade e o comportamento de todas as gentes tocantinas. E esse número, dez, poderia ser multiplicado sempre” (p.106). Inspirando-se nesse método muito mágico, geométrico, poético e astrológico, Peel inventou nesse livro uma maneira de revelar o Tocantins, essa terra feita de distâncias, que para ser decifrada é preciso encontrar caminhos entre seus sinais. A natureza solar e ao mesmo tempo obscura dos signos da esfera tocantina faz com que eles apareçam às vezes nítidos e às vezes portadores de estranhas metamorfoses. Assim é que se discernem os exóticos signos das “baleias com chifres que aspergiam leite santo” e o dos “labigós-mutantes”, mas também signos de sólidos “pássaros” e nítidas “onças”. Luiz Roberto Peel escreve de uma forma muito livre, intercalando em sua prosa, reflexões, pensamentos filosóficos e histórias inventadas ou lembradas, muitas vezes utilizando palavras ou expressões novas que parecem ter sido especialmente criadas para esse livro. Do ponto de vista da linguagem, essa liberdade aparece como potência de metamorfose entre os gêneros textuais tão díspares enunciados no título, a saber, “epopeia” e “ensaio”, quanto às variações do estilo da prosa ao longo das páginas. A ideia de metamorfose também pode ser compreendida no nível da simbiose entre imagem pictórica e palavra que se apresenta no plano da composição do texto repleto de desenhos elaborados pelo autor, os quais, para além da tradicional ideia de ilustração, funcionam como escrita. Do ponto de vista da atmosfera do conteúdo global do livro, Peel capta com perfeição o signo geral do Tocantins, o qual se define justamente pela potencialidade das metamorfoses entre quaisquer signos particulares que se apresentem ao decifrador dessa terra, a qual se mostra, de ordinário, como velha e nova ao mesmo tempo, em que convergem ignorâncias e sabedorias, invenções e protocolos, dando a impressão de que aqui se sobrepõem temporalidades diversas numa mesma e única época. O livro propõe a cartografia desse lugar, em que a identidade de um povo está por ser construída a partir de elementos de diversidade representados pela conciliação de contrários ou até mesmo de paradoxos entre costumes ancestrais de valor à vida, à criatividade e à natureza, e a introdução dos valores da modernidade tecnológica predatória. Esse signo geral aparece representado pela potência das metamorfoses das dez figuras elencadas a saber: baleias, tamanduás, onças, pássaros, árvores, peixes, gatos, labigós-mutantes, labigós-tecelãs e arraias. O narrador-oraculista começa lendo os signos pelo avesso, método que permite o deciframento de mistérios sem violá-los. A baleia, por exemplo, enorme como o próprio Tocantins – um signo à primeira vista de aparência nítida -, aparece desde a primeira vez enunciada como praticamente invisível exatamente por conta de sua magnitude, tal como a grandeza oculta da origem de todas as constelações. Nesse zoodíaco tocantino a baleia descreve uma estranha aparência de destino de leveza, quem sabe por surgir aqui, tão longe do mar: “As baleias são virtualmente diagramáticas, distanciando-se de qualquer ser ou de qualquer representação material de ser, sendo visíveis somente de certa distância. Quando o vidente se aproxima demais, elas desaparecem em seus voos” (p.20). Para visualizarmos melhor essa baleia, Peel nos entrega um desenho, em meio às palavras, em que mostra o momento em que esse animal aquático, porém mamífero, ele mesmo na forma de uma gota, inicia uma trajetória em que, aspergindo seu leite, metamorfoseia mimeticamente a via láctea tradicional, nesse zoodíaco renovado pelas formas tocantinas. Assim é possível vislumbrar como todos os começos se dão pela conciliação dos contrários, iniciando com o zero, a esfera, o círculo, o ventre, o caos, passando, sempre através do amor (início dos inícios ocultos), a todas as formas, às pessoas e suas criações. Então, em brusca metamorfose, a imagem transforma-se numa cena difusa mostrando um velho entre crianças, talvez o quadro de uma representação da potência das metamorfoses a partir das relações entre linguagens, sabedorias, mapas, geografias ou astrologias: “E, de gesto em gesto, desenhando quando não conseguia se fazer entender, o velho saruel se tornou o mestre também daquelas duas crianças, fundadoras de muita coisa da região tocantina”. Trata-se aqui da invenção de um começo-baleia, de muitas possibilidades e caminhos e nenhuma receita, sob uns modos de Anaxágoras de Clazômenas, um filósofo que, dizem, gostava da companhia das crianças e ajudou inclusive a criar suas festas de aniversário. Parece que Anaxágoras foi além das metamorfoses externas de Heráclito, propondo a troca dinâmica da transformação do subjetivo em objetivo e novamente em subjetivo, numa visão de mundo análoga à de um grande teatro cósmico. O velho mestre do livro de Peel vai então pontuando aos alunos, frente aos signos e suas metamorfoses, alguns elementos-chaves para a elaboração da leitura do oráculo zoodiacal. Ele pretende apontar para as possibilidades infinitas da relação entre as formas, expor ideias de construção de ligações e apresentar visões sobre seus contextos, enfatizando a unicidade do ponto de vista de cada um, porque só assim é possível decifrar um oráculo e só assim é que um zoodíaco faz sentido: levando em consideração todos os seus sinais. Nesse ponto as crianças aprendem que todas as formas são espécies de linguagem e a metamorfose se faz entre as artes de seus códigos e sintaxes: “E as vírgulas são importantes para marcar a seriedade do fenômeno, sua pontualidade virgular – já que virgular é necessário para casos deste tipo (casos terrivelmente catatônicos). Se, por acaso, vivê-la, cante e dance, sendo mimeticamente musical; pois os tons sonoros impedirão que os tons visuais se percam no anonimato da descolorização imediata. A música, com seus passeios pelo caos, pela movimentação infinita de partículas sonoras, pode impedir o sumiço de cores (Saiba sempre disso! Não esqueça! Guarde em seu coração!)” (p. 34). Aqui está, bem ensinada, a potencialidade das metamorfoses como função de beleza, invenção e propriedade da linguagem, essa que traça o ritmo entre quietude e movimento, que expõe a homologia entre som e cor modulando o destino das emoções e dos comportamentos. O segundo signo está ali, o signo da alegria, desenhado como uma bandeira com o coração ao centro, um tamanduá, ornado, parece, de sinais métricos tais como notas musicais ou teclados de piano, talvez sejam formigas em suas franjas… os caminhos de suas formas incluem todos os elementos primordiais e energéticos na compleição de seu mapa, que reflete histórias inventadas e histórias recordadas, tal como uma lenda indígena, sobre a origem de alimentos, de festas e do fogo. As marcas métricas que aparecem nesse tamanduá, tais como os sinais da música, e os corações como preenchimentos de centralidades geometricamente definidas, se repetem como elementos básicos da composição de todas as formas do zoodíaco tocantino. O terceiro signo, da onça, da vaidade, da duplicidade, talvez dubiedade, aparece desenhado em várias posições. Numa delas, nota-se, a metamorfose se aproxima de um olho e de uma borboleta ao mesmo tempo (p. 41). Aqui destaca-se a história de uma onça rebelde, uma onça filosófica que, a despeito de ser abordada pelo narrador como uma personagem construída aos modos do perspectivismo indígena – o qual é, na verdade, mimetizado no livro como um todo -, “adorava foucault e deleuze (e guattari); era apaixonada por nietzsche e por espinosa; leibniz era uma outra paixão” (p.43). Ao leitor então, cabe fazer as associações das qualidades psíquicas enunciadas, com as formas da onça que, embora rebelde e filosófica, continua mesmo a ser onça. O quarto signo, dos pássaros, combina o sentido sonoro da palavra “trino”, atributo natural do animal pássaro, com a evocação ao número três (que posiciona a ordem do signo entre os outros se considerarmos as baleias como signo zero), além de reger os atributos psíquicos dos nascidos sobre esse signo “do ar”, os quais se definem como portadores, tais como anjos, da ideia sagrada de trindade e, por conseguinte, também da natureza da palavra como elemento de função comunicativa, de mensageira entre os seres: “Ser pássaro tem muitos sentidos, dos quais o maior é aquele que aproxima cada ser que voa de cada palavra que também voa, já que os pássaros passam, mas as palavras que voam ficam” (p.51). O quinto signo, das árvores, ou boés, é o signo da fraternidade e do abraço, a origem do próprio Tocantins. Nesse capítulo aparecem palavras novas, tais como “chalimis” e “boés”, designando seres ancestrais e também certa melancolia por conta da ininteligente extinção generalizada do mundo vegetal e suas florestas, o qual configura o próprio fundamento da existência dessa região: “as gentes de hoje em dia não percebem o outro, nem na natureza nem na cultura, o que as impossibilita de ouvirem as canções ou as danças de chalimis, de boés e de outros seres numinosos, já que a audição é um dos sentidos mágicos em sua excelência espiritual” (p.60). O sexto signo, dos peixes, é o do amor e, portanto, da multiplicação. Traz associações antigas, que se relacionam a outros signos sagrados conhecidos através de contextos simbólicos diversos. Mas aqui se destaca a ligação desse signo com a noção de beleza contida nas ideias da matemática e da arte, ou seja, do mundo da exatidão combinado ao mundo da liberdade: “Peixes e pássaros, danças e músicas, gestos e sons, uniram-se assim pela e para a arte – por e para agenciamentos; por e para experimentações; e por e para devires” (p.69). O sétimo signo, dos gatos ou “pingos” (pois os gatos possuem pingos específicos pintados em sua pelagem), é o da criatividade, que aqui aparece associada aos afetos e à magia, tão propícios à simbologia do número sete: “Os seres tocantinos viviam assim o bem e o belo, almejando, graças aos pingos criativos derramados sobre eles, a vontade da potência e a imanência inventiva – tão valorizadas naquelas terras, águas e céus” (p.76). O oitavo signo é designado por um animal inventado, o “labigó-mutante”, o signo do professor, do narrador evocado pela Penélope oculta mencionada através do enigmático animal de mesmo tipo da mítica personagem homérica, a “labigó-tecelã”. A perspectiva do narrador-professor, que aqui discorre sobre a natureza de seu próprio signo de forma realista, é caracterizada por ele mesmo como algo emocionante e de grande responsabilidade, não obstante desvalorizado pela sociedade: “A labigó-mutante pode, então, rastejar, voar, nadar, correr, dançar e pensar; por isso tudo é que pode ensinar, alcançando aprendizagens variadas e múltiplas e profícuas e sabe se lá mais o quê”. No nono signo é que aparece a “labigó-tecelã”, especificando o signo do narrador em sua essência mítica e própria: “as labigós-tecelãs eram nos primórdios tocantinos as professoras de todas as gentes, de todos os animais e de todos os númens; compondo, ao lado das labigós-mutantes, o quadro docente de todas as escolas: sendo que cabia às tecelãs a transdisciplinaridade; e, às mutantes, toda a transdução alagmática” (p.88). Esse é o capítulo de tom mais grave do livro, em que vida e morte aparecem como lições dos dois tipos de labigós mencionados, representando a transformação da existência espontânea e viva dos mitos, à passagem à letra morta que, não obstante, se quer viva através da atividade pedagógica. O décimo signo, o das arraias, é o signo do juízo, mas de um juízo como função e não necessariamente realizado como tal. Nesse sentido, representam um juízo possível dentro do contexto da potencialidade das metamorfoses: “As arraias são como juízes, podendo decidir destinos; mas... só o fazem com a ajuda de labigós e de pingos. Tinham, naquelas épocas, um grande dom – viam o que não existia; viam baratas, onde não as havia; viam soluções, onde não as havia; viam por manchas, onde não havia nada. Tinham essa capacidade rara. Eram justas por isso? Ninguém o sabia ao certo (p. 98)!” E é assim que esse zoodíaco de Peel propõe o desdobramento das combinações de seus signos em infinitas metamorfoses, de velhos em crianças, de prosa em poesia, de ensino em aprendizagem, de desenho em escrita, de invenção em filosofia, de arte em mapas de sabedoria, tudo isso compreendido na empreitada da descoberta e revelação dessa terra metamorfoseante, nomeada Tocantins. Ilustração: desenho de Luiz Roberto Peel “Zoodíaco Tocantino: a epopeia ensaística de um povo inventivo” de Luiz Roberto Peel Furtado de Oliveira foi publicado no ano de 2020 e pode ser acessado através do link: https://www.ideiaeditora.com.br/produto/zoodiaco-tocantino-a-epopeia-ensaistica-de-um-povo-inventivo/

  • Instituto Raoni

    www.institutoraoni.org.br

  • Capoeira e arte-educação: corpo, mente e emoção

    As palavras arte e educação expressam bonitas ideias sobre qualidades humanas em seu domínio próprio, que é o da cultura. Somos humanos à medida que cultivamos aquilo que nos torna humanos. Entre as coisas que nos tornam humanos estão a arte e a educação, ideias dinâmicas que devem se expressar em imagens de processos e práticas em movimento e desenvolvimento. O que se move e se desenvolve é o corpo, o pensamento e o sentimento de quem cultiva a arte e a educação. Observando sua estrutura integral, a qual aponta nitidamente para o movimento e o desenvolvimento de cada uma dessas “partes” do ser humano, a Capoeira pode ser considerada uma forma bastante completa de prática cultural humanizadora. Tudo o que é música, poesia e história na Capoeira movimenta e desenvolve os sentimentos, as emoções, o coração. Ao entrar em contato com uma canção tal como “Jogo de Angola”, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, os sentimentos são mobilizados pelo ritmo do samba, que estimula o corpo simultaneamente à letra poética, que por sua vez estimula a imaginação, tendo o tema da Capoeira como elemento de ligação entre a vivência individual e todo o conteúdo histórico, cultural e coletivo relacionado à arte. Aqui o indivíduo se “sente” imerso nas emoções de alegria e tristeza, com suas variadas gradações de acordo com a vivência de cada um. Se tal riqueza de sentimentos é passível de ser mobilizada pela simples audição de uma canção gravada, quanto mais será expandida no engajamento ativo pela participação numa roda, em que melodia e ritmo fluem de toda parte. “Berimbaus, atabaques, ganzás, agogôs, pandeiros, tudo é som e movimento. (…) A música é um dos instrumentos de preservação da memória, transmitindo as tradições de diferentes épocas do passado da Capoeira. (…) as cantigas irão acompanhar e descrever - numa linguagem peculiar - as situações que acontecem na roda, quando não ocorre do canto determinar, de forma sutil, o desenvolvimento das ações. A poesia pode significar uma provocação a alguém ou uma brincadeira com qualquer dos capoeiras; pode traduzir uma advertência à forma muita das vezes perigosa em que transcorre o jogo; pode ser ainda a reverência a um orixá”, explica Camille Adorno no livro “A arte da capoeira” (p. 64). O que chamamos aqui de “música”, inclui - além da arte que contempla a produção de aspectos especificamente rítmicos, melódicos, harmônicos e timbrísticos, formando gêneros específicos -, a arte da palavra, presentificada também em gêneros diversos, desde improvisos até cantigas e ladainhas, preenchidas de poesia e história. Os sentimentos estimulados e desenvolvidos através da música e da poesia podem ser capazes de gerar a energia necessária ao desenvolvimento dos aspectos corporal e mental. Ao se emocionar o ser humano se abre para a construção do conhecimento em nível intelectual. O contato com a música aponta para reflexões sobre a importância da Capoeira como elemento cultural no contexto histórico e político concomitantemente vivenciado nas emoções. Através de reflexões impulsionadas pelo acesso a filmes tais como “Besouro” ou “Mestre Pastinha: uma vida pela Capoeira”, a livros, textos, bate-papos, rodas de conversa e leituras, desenvolve-se a habilidade de um pensamento crítico a respeito da função da Capoeira na sociedade. A construção desse conhecimento é ampla, podendo se concentrar nas especificidades culturais da própria arte, com a história e o papel de cada um de seus elementos, desde os instrumentos, gestos, origens, variações e mestres, até às importantes ligações da Capoeira com a luta antirracista pelos plenos direitos políticos à igualdade: “investigar a proveniência da capoeiragem no Brasil requer analisar a condição de vida dos negros escravos, as tradições africanas, o encontro entre diferentes etnias africanas e brasileiras, o contexto escravista, a conexão de diferentes linguagens”, explica Sonaly Torres da Silva em “Capoeira: movimento e malícia em jogos de poder e resistência” (p.29). Aqui se delineia a Capoeira como um poderoso instrumento de educação do pensar crítico, a partir do estímulo a investigações e reflexões. O conhecimento da arte, no entanto, só pode ser considerado efetivo, quando é vivenciado pelos membros do corpo visível. Ao se constituir em gestos específicos na esfera motora, na ginga, que é dança e é luta, aquelas emoções, histórias e conhecimentos da Capoeira, já contidos no corpo invisível das emoções e dos pensamentos, literalmente se materializam como forma de vida. Arte é sobretudo “vida” na acepção de emergência de “sentido”, de realização de uma forma almejada, de presentificação de uma cultura. A vivência da dimensão corporal, motora, a presença física na roda, é o aspecto acabado, “completado”, da Capoeira. Aqui o corpo individual se realiza ao mesmo tempo que também é integrado ao corpo grupal, o qual é apreendido pela noção de coletividade ao mesmo tempo que também é vivenciado por relações específicas, seja entre pares, seja entre diferentes. A prática física, na roda, é a encarnação, a vivificação, a atualização da Capoeira, em simultaneidade com as emoções e conhecimentos. Embora a Capoeira possa ser apreendida a partir de impulsos e objetivos individuais, tais como considerá-la apenas um instrumento de condicionamento físico, por exemplo, sua própria estrutura impõe a vivência como “convivência” ao praticante. Essa especificidade dá sentido e importância ao corpo físico como modo de presença, ou seja, como elemento central da cultura humanizadora. Certamente é possível assistir a alguns vídeos de Capoeira e imitar seus gestos em casa, solitariamente, mas, com certeza, isso não poderá ser nomeado de Capoeira, ao contrário de outras práticas físicas, que podem ser realizadas integralmente sem a presença de outras pessoas. Isso mostra como a Capoeira é uma arte que nasce de uma visão de mundo integral, típica da sabedoria de povos originários, em que as dimensões física, emocional e intelectual dos seres humanos são todas simultaneamente vivenciadas, estendidas à convivência em grupo, ao viver cultural, em oposição à visão de mundo fragmentária e fragmentada, a qual, por sua vez, é típica do modo de vida colonizador, europeu. Por mais que a Capoeira possa ser identificada como tal a partir das características expressões da ginga - movimentos tais como Negativa, Resistência, Meia-lua de Frente, Aú, Bênção, etc. -, ao mesmo tempo parece ser impossível determinar uma padronização para o movimento de seu jogo, o que corrobora a arte como esse espaço próprio ao desenvolvimento do corpo individual e coletivo ao mesmo tempo, ou seja, como um espaço educativo, sem que tal seja especificamente enunciado, porque a educação, numa visão de mundo integral, se faz pela abertura a uma liberdade possível a partir da determinação cultural vivida espontaneamente (lembrando aqui que originalmente as rodas de Capoeira se davam no cotidiano da cidade). É por isso que preferimos aqui chamar a Capoeira de arte, e não de esporte ou luta, embora também seja um esporte e uma luta. “Não se pode classificá-la observando somente a função técnica dentro das possibilidades e aspectos da luta. Nesse caso ocorreria uma limitação dos elementos componentes, levando a uma padronização - ou estilização - derivada do seu emprego reduzido a apenas um propósito. Seria como se estabelecêssemos uma analogia entre a ginga, na Capoeira, e as bases das lutas orientais, ou a troca de pernas no boxe. Se admitíssemos esta relação, a ginga não mais diferiria das posições de luta mencionadas, apesar da sua dinâmica e uso indispensável. (…) Existe um princípio de movimentação em equilíbrio, com as ações circulares típicas do jogo, que determina uma forma de ginga para cada jogador, atendendo a suas características e preferências. (…) As padronizações - ou estilizações - levam à diminuição do espaço reservado à arte, aos improvisos de cada jogador, empobrecendo e descaracterizando o jogo, invertendo suas finalidades”, explica Camille Adorno (p.83). A palavra jogo também é uma ótima maneira de referirmo-nos à Capoeira, mas seu significado é mais generalizante do que o de “arte”. Segundo Johan Huizinga, em sua obra “Homo Ludens”, o jogo pode ser considerado um fenômeno anterior à própria cultura e sua primeira característica é justamente a liberdade: “Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. (...) Chegamos, assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade” (p.12). O jogo é essa espécie de elemento contraditório no seio da cultura, já que confronta a própria noção de sociedade como a forma de vida considerada normal, cerceadora da liberdade à medida que se estrutura e se fixa em leis e regras. Talvez, por conta de sua natureza de “jogo”, a Capoeira vai se metamorfoseando livremente em estilos diferentes, partindo do tipo Angola para se ramificar em Regional e Contemporânea. Nesse sentido a Capoeira filia-se adequadamente ao significado de “jogo”, expressando, desde suas origens, justamente a liberdade inerente à vida daqueles que eram considerados escravos pelas classes dominantes escravagistas. Ao filiar a Capoeira ao significado de “arte”, no entanto, operamos uma aproximação à ideia de educação, à medida que se pode tomá-la como uma espécie de instrumento para a evolução das potencialidades humanizadoras da cultura. Portanto, embora seja bastante comum a identificação da Capoeira como uma atividade eminentemente de destreza física, essa acepção se configura extremamente incompleta porque não leva em consideração a sua integralidade. Mas considerar a Capoeira como arte, ao mesmo tempo que a vincula a uma noção educativa, garante também sua total independência e autonomia em relação a essa esfera. Isso ocorre da mesma forma em todas as artes, as quais devem ser consideradas em seu valor intrínseco, pois embora a pintura, o desenho, a escrita, constituam importantes instrumentos educativos, isso acontece porque essas artes existem em si, para si. Van Gogh, Tarsila do Amaral ou Machado de Assis foram pintores e escritores e não educadores, e suas obras são quadros e livros e não rascunhos, anotações e processos de aprendizado. Aqui novamente somos remetidos ao aspecto cultural da Capoeira, o qual se delineia mais precisamente a partir de uma visão do plano mental. Nesse sentido aprende-se que há um nível na arte que ultrapassa essa instrumentalidade a qual a define como algo a ser utilizado pelo ser humano em direção ao desenvolvimento de habilidades gerais (os objetivos educacionais). Existe um nível em que o ser humano é que será o instrumento da arte, ele é que vai alimentar e sustentar a Capoeira, criando níveis de excelência dentro de seu gênero. Aprendemos sobre isso acessando a história dos mestres e, com sorte, convivendo com algum deles. Assim, a Capoeira, como instrumento educativo, deve ser também uma porta de entrada para níveis de excelência reservados aos futuros mestres, os quais são, na verdade, os guardiães da arte. Do ponto de vista da educação, situamo-nos, ironicamente e contraditoriamente, na posição de fomento ao desenvolvimento integrado das dimensões emocional, física e mental do educando, justamente fazendo parte de um projeto de civilização baseado no desenvolvimento fragmentário dos saberes e disciplinas, ou seja, imersos em um ambiente que preconiza o contrário da expressão de uma prática cultural tal como a Capoeira que é, em si, atividade integralizadora. É a ciência da educação que olha para a Capoeira discernindo em sua estrutura o direcionamento aos aspectos físico, emocional e mental e apontando para suas especificidades, ao passo que, em sua prática, a Capoeira é a vivência simultânea desses aspectos. Nesse sentido a Capoeira vai de encontro a um certo anelo da educação, que é fomentar o desenvolvimento integral do ser humano. Podemos encontrar essa aspiração educacional em diferentes correntes teóricas, desde os escritos de Paulo Freire até a teoria psicológica de Piaget, passando pela pedagogia Waldorf - a qual concebe a arte como aspecto central e privilegiado no processo educativo – dentre outras para, por fim, a própria educação ser considerada também uma forma de arte, como diz Paulo Freire: “Para mim, a educação é simultaneamente um ato de conhecimento, um ato político e um ato de arte”. Imagem: Walter Antunes

  • Fotografia e performance nas redes

    Fotografia como performance entre processos de autoconhecimento, comunicação e arte em tempos de cibercultura. Foi a partir desses elementos que Alessandra da Mata compôs os autorretratos da série ‘Recorte 365’, uma série de imagens de base fotográfica que foram produzidas com o objetivo de expressar a pluralidade do “eu anônimo” da artista refletido no espelho de tipos universais e personagens famosas ao longo de um ano. Alessandra diz que “de 20 de agosto de 2011 a 20 de agosto de 2012 foram produzidas 365 imagens. Uma por dia, religiosamente”, veio daí o nome do projeto. “Esse processo de recriar aquilo que já foi criado, é muito antigo. Muita gente já fez. Eu não sei se alguém foi capaz de fazer isso por um ano, diariamente, como eu, mas já era uma prática comum. Eu não inventei isso. No entanto, essas imagens foram compostas num período em que as pessoas ainda nem falavam de selfie, embora o autorretrato com a fotografia tenha nascido com Man Ray lá nos anos 1920. Mas a selfie, do jeito que está configurada hoje, veio depois”. Na época em que foram produzidas, as imagens foram publicadas no perfil de Facebook de Alessandra da Mata, mas agora voltam a ser apresentadas no Instagram da artista num novo contexto: “com a chegada da pandemia do coronavírus e o fechamento dos museus e dos espaços culturais, diversos canais de arte como o Arte 1 e o Tussen Kunst e Quarantaine lançaram desafios aos seguidores como ações de incentivo à apreciação da arte. Esses desafios propõem a recriação de obras de arte pelo público. O negócio tomou uma dimensão gigante e muitas pessoas começaram a me mandar os links desses desafios fazendo alusão ao meu projeto. Então, por causa desses pedidos das pessoas, comecei a republicar as imagens na plataforma Instagram, que não existia na época em que eu as produzi”. A motivação para a produção das imagens está ligada a um caminho de autoconhecimento. Alessandra revela que o trabalho fez parte de uma espécie de processo de elaboração da sua autoestima num momento de fragilidade. “Foi um período da minha vida em que não estava feliz com as escolhas que tinha feito para mim. Sem muitas perspectivas, no mês de agosto de 2011, quando fiz aniversário, decidi que ia começar a fazer um anuário fotográfico. Eu trabalho com edição de imagens, então a fotografia já fazia parte do meu dia a dia. Na época tinha comprado uma máquina semiprofissional D40 da Nikon. A ideia era fazer experimentos fotográficos e ver se eu levava jeito”. Do ponto de vista técnico, Alessandra brinca dizendo que esta série é uma “superprodução paupérrima”, pois fez tudo com poucos recursos financeiros e ajuda de amigos. A fotografia é a base, porém muitos outros elementos foram necessários à produção, desde a pesquisa sobre as obras de arte referenciadas, elaboração de figurinos, acessórios e cenários, até as técnicas de colagem como etapa de finalização digital das imagens. “Eu não tinha recurso nenhum. Tinha apenas um conhecimento básico sobre fotografia. Fui aprendendo fazendo. As fantasias, eu fazia com papel color set, com retalhos de tecidos, perucas de papel crepom, então imagina o quanto de manualidades você exercita num lance desses. No começo eu não tinha tripé, então para achar altura colocava a câmera numa escadinha de livros, pendurava na escada, e muitas vezes fazia segurando a câmera ao contrário. Era difícil achar o ângulo, era muito louco, fui pegando o jeito, achando meu melhor perfil. E tinha que fazer tudo em pouquíssimo tempo. No decorrer dos meses fui ganhando acessórios dos amigos, e no meio do projeto ganhei também um tripé, inicialmente emprestado, posteriormente doado. Fez toda a diferença. Fui também aprendendo a fazer colagem digital. Tanto que é visível uma evolução estética nesse sentido. Quando comecei a usar as colagens, foi bem legal, porque eu usava o fundo da imagem original e me colava no lugar da personagem principal. Porém uma regra que me impus no processo foi de não contar com a ajuda de outras pessoas na etapa do fazer. Eram autorretratos, então eu precisava fazer tudo absolutamente sozinha”. A forma de produzir as imagens desse projeto, escolhida por Alessandra da Mata, tem uma ligação fundamental com a modelagem de formas esculturais e artes manuais, áreas em que a artista tem bastante experiência. “Eu me considero uma pessoa artesanal. Obviamente compor uma personagem tem a ver com moldar-se a si para representar o outro. Sempre fui uma pessoa das artes primárias. Gosto de trabalhar com modelagem, costura, aplicações, tricô, bordados, desenho e pintura. A fotografia acrescenta um contato com o olhar artístico e artesanal que tenho sobre as coisas. Existe um preconceito com isso que se chama de artesanato, que o classifica como uma arte menor. Eu não considero assim, porque muito do artesanato vem de sabedorias milenares”. As personagens “modeladas” por Alessandra evoluíram de uma ideia inicial mais universal, de representação de tipos, para se transformarem na recriação de imagens específicas, localizadas ao longo da História da Arte. “Inicialmente comecei fazendo fotos de alguns estereótipos de profissões, o padeiro, a professora, a empregadinha gostosa do programa de humor, a enfermeira, a camponesa, aqueles estereótipos que víamos em filmes, capas de disco, ilustrações de revistas. Era meio que um exercício de interpretação também. Daí então, vieram as releituras. Li uma matéria sobre a Cindy Sherman, que ficou famosa por seus autorretratos conceituais na década de 70. À época Sherman levantou questões importantes sobre o papel da mulher na sociedade, e isso me intrigou. Era o que eu queria fazer, tocar num ponto dessa coisa, dos padrões. O único compromisso que tinha era comigo mesma, era de me ver diferente, de perceber minhas capacidades, de descobrir meus talentos, de me amar. Porque não poderia ser feliz gordinha como estava?! Agreguei esse conceito às releituras. Inicialmente eu escolhia artistas pop, eu admirava, e fui fazendo uma seleção dos ilustradores, artistas gráficos e das obras de arte que me impressionavam”. O contexto atual da cibercultura e o predomínio das redes sociais virtuais nas relações pessoais e na comunicação é outra faceta indissociável da produção desse trabalho. Para Alessandra da Mata a conexão do projeto com as redes sociais foi além da questão da divulgação, determinando o aspecto estruturante do ritmo de produção. “Como eu publicava uma foto por dia, com o passar do tempo as pessoas que me seguiam começaram a me cobrar, ‘cadê a foto do dia?’ Então o compromisso que inicialmente era só comigo mesma passou a ser com o outro. Era um grupo pequeno de pessoas, mas tinha quem esperava a minha produção. Isso foi engraçado. As redes sociais são portais livres para um novo tipo de comunicação. Elas estão aí para facilitar uma série de processos, mas também podem ser usadas de forma muito negativa. Você precisa estar ciente do que deseja fazer. Eu não fiz o trabalho por conta das redes, fiz para mim, mas foi ali que eu aparecia todos os dias para o olhar do outro. Talvez o fizesse mesmo sem as redes, mas obviamente não teria público, seria uma coisa mais pessoal mesmo”. Alessandra da Mata tem 46 anos, é jornalista, mora em São Paulo, e diz que “há quem diga que sou artista, há quem diga que sou performer, mas sou apenas uma curiosa dos experimentos”. Atualmente se dedica a projetos têxteis com bordados e pretende usar algumas das fotos desse projeto em seus bordados. O Instagram de Alessandra da Mata é: instagram.com/alegoriadamata/ #alessandradamata #KATAWIXI #katawixi #fotografia #luamasocio

  • Quatro modos humanos de ser animal

    Um dos modos mais comuns, infelizmente, de ser animal, é o modo fascista. Esse tipo está presente exemplarmente nos contos de Bichos, livro que Miguel Torga escreveu e lançou em 1940 fazendo uma espécie de descrição fenomenológica do fascismo em Portugal pela perspectiva da observação das características psicológicas do seu povo. Nos contos de Torga, a questão do animal como metáfora salienta a ironia de se tomar como “natureza” indelével um nítido princípio de perversão para a prefiguração do social, qual seja, a naturalidade da opressão, a "natureza" do subalterno compondo com a força do sistema ou dos dominadores. Trata-se de um livro divertido, agradável, e totalmente pertinente de ser lido nesse momento. Os Bichos escolhidos por Torga para caracterizar o povo português são na maioria os animais domésticos, escolha que ressalta o papel fundamental da família como unidade econômica e sustentáculo moral do autoritarismo patriarcal fascista. Obviamente acompanhando esse quesito, não faltam também os outros elementos discursivos de sustentação do fascismo ao longo dos contos, quais sejam, religião, violência, patriotismo, repressão sexual, tortura, assassinato. Aqui estão o cão, o gato, o galo, o jumento e, com eles, a subserviência, a preguiça, o egoísmo, o orgulho. Cada animal representando qualidades e defeitos psicológicos que fazem do animal-humano um humano, embora animal. E claro, o ponto central dessa psicologia é a questão da irracionalidade no núcleo dos comportamentos, colorida de modo mais ou menos uniforme pelo fundo da “essência” de todo e qualquer animal a saber: o medo. Assim esses bichos aparecem, cada qual à sua maneira, nas situações dos contos, em posição de defesa, porém como são humanos, essa “defesa” é construída como obediência aos ditames sociais de suas funções. Nesse ponto Bichos dialoga com uma obra talvez bem mais conhecida, A Revolução dos Bichos, de George Orwell, uma possível continuação do livro de Torga caso os bichos resolvam fazer uma revolução. Nesse caso esses animais se caracterizam pela incrível capacidade de serem facilmente enganados pela perspectiva de uma revolução que, ao fim, se transforma exatamente no contrário de suas metas iniciais, ou seja, naquilo que fôra o próprio motivo da revolução. No mundo animal obviamente o poder é material, é força, é poder sobre a vida. Força que se faz necessariamente pelo direcionamento das energias físicas pelos mandatários, pela opressão objetivando servidão. Servidão de animais à vida de outras espécies animais, as mais fortes, as que possuem maior força bruta, física. Destaca-se nesse aspecto do livro de Orwell a questão importante do racismo vinculada ao fascismo, no sentido de serem descritas qualidades raciais consideradas determinantes no comportamento social. A vinculação moral da aparência da raça ao determinismo da sociedade de classes é um dos elementos emocionais mais poderosos do texto. Esse dispositivo também causa impacto em Bichos de Miguel Torga. Sob esse ângulo é possível concluir, com as duas obras que, como a raça é imutável, como a forma animal está acabada - e o caso poderia ser diferente com o ser humano -, não há muita esperança de modificação nas estruturas políticas e sociais denunciadas nas duas obras. Piorando as perspectivas humanistas, em a Revolução dos Bichos a figura do homem, em contraste com a do animal, coincide privilegiadamente com a característica da abstração da inteligência animal para a arquitetura da exploração capitalista. No homem essa abstração, que equivale à própria exploração, está aperfeiçoada. Portanto o homem é sempre animal e nada além disso. Essa é a obviedade dos textos. Esse é o incômodo: o da racialidade. Os animais, os quais distinguem-se por suas raças, podem ser bem aproveitados pela economia exploratória. Veja o cavalo com sua força, as vacas com seus leites e as galinhas com seus ovos. As predisposições, os comportamentos, são traços biológicos. E as emoções são expressões das linhas animais. No capitalismo industrial fascista há ordem, cada coisa está no seu lugar de forma “natural”. Claro, há as personagens extremas nos dois livros, aquelas que aparentemente não se encaixam na ordem. Mas essas são tão estáticas quanto as outras em sua racialidade definidora. O papel dessas personagens na sociedade, embora não produtivo, é previsível e tem o seu lugar de encaixe no sistema dominante. Em George Orwell os extremos selvagens são os ratos e os coelhos e o extremo doméstico é a égua, existindo ainda os vagabundos, como o gato por exemplo. Em Bichos, de Miguel Torga, as poucas personagens humanas centrais cumprem uma das caracterizações extremas, ou seja, da marginalidade: a prostituta parindo um filho morto, o amor crístico perdido em meio ao autoritarismo e medo, há um pastor assassino e também um aristocrata frustrado e depressivo. No mais, outros extremos são o sapo, a cigarra e o melro, os quais não possuem utilidade diretamente exploratória pelo sistema capitalista. Obviamente há grandes diferenças estilísticas entre esses dois escritores contemporâneos. Em George Orwell as personagens têm uma consistência mais esquemática, até alegórica. Em Miguel Torga as personagens são seres psicológicos, trata-se da “raça” psicologizada. Se em Torga, não obstante, há uma denúncia da desesperança, parece que a leitura de Bichos indica a existência fresca de um espírito de revolta, na verdade encabeçado pelo tom de voz do próprio autor. Já em Orwell essa revolta já foi desvendada e desencantada. Há um terceiro modo humano de ser animal. Para quem não quer saber de política em nível social mas quer rir das ininteligências ou inteligências do animal humano é possível se divertir à beça com A Ovelha Negra e Outras Fábulas do hondurenho Augusto Monterroso em que, apesar do estilo leve e aparentemente desvinculado de críticas sérias ao fascismo, o livro mostra como é mesmo que o leão e não o macaco, se revela como o mais apto ao governo, como as galinhas só pensam em reproduzir e, por mais que a mosca sonhe alto, ela jamais será como a águia simplesmente porque, pela sua natureza intrínseca, há o gosto por fezes em seu DNA. A animalidade é a condição natural do ser humano de tal forma que, mesmo ridículo em sua irracionalidade, o homem continua sendo apenas um bicho, imutável, do qual decorre toda sua miséria individual e, complementarmente, o sucesso de todas as regras mesquinhas da organização social com suas inerentes injustiças. O humanismo é apenas uma fantasia de ovelhas tolas. Por fim há um quarto modo. Esse é para quem ama o animal e vê nele destacadas, não a irracionalidade indesejada, julgada assim pelas cabeças iluministas e humanistas, mas sim, toda a verdade e a força, reais e reprimidas, da condição humana que, se fosses liberadas, causariam revoluções verdadeiras e fariam as justiças dessa vida. Portanto aqui é necessário ler O Livro das Feras, da americana Patricia Highsmith, em que todos os bichos, do porco ao macaco, passando pelo cão, são doces e vingativos assassinos totalmente integrados à sociedade capitalista, consumista e hipócrita implantada pela ordem primeiro-mundista. Enfim, para Torga, Orwell, Monterosso e Highsmith, definitivamente o mal não é o animal. E diga-se de passagem que, inclusive para Carlos Drummond de Andrade, os animais são anjos, segundo consta no poema Os Animais do Presépio. Foto e arte: Walter Antunes #KATAWIXI #Katawixi #Literatura #luamasocio #walterantunes #migueltorga #georgeorwell #patriciahighsmith #augustomonterroso #bichos #revoluçãodosbichos #olivrodasferas #aovelhanegraeoutrasfábulas

  • Haverá futuro para a educação?

    A educação no Brasil vinha sendo entendida e concebida pela maior parte dos profissionais da área, desde pelo menos a metade do século XX, como um elemento óbvio de projeto de Estado, inserida no contexto constitucional, realizada de forma institucionalizada, uniformemente, em todo o território nacional. Justamente essa visão vem sendo questionada e dissolvida, de forma pulverizada em toda a sociedade, e essa dissolução tem sido adotada muitas vezes como posicionamento político relevante e válido em meio à crise cultural generalizada da atualidade. Parece que cabe aos próprios profissionais da área um esforço sério de reflexão a respeito dessa situação porque a própria ideia de profissão associada à ideia da “área” depende da definição de um lugar para a existência desse fenômeno social a que chamamos generalizadamente educação para nos referirmos à escola institucionalizada pelo Estado de direito. Normalmente, nos meios educacionais, o debate sobre todos os variados problemas e questões relativos ao processo de ensino-aprendizagem é feito sobre a pressuposição tácita da existência de um sistema educacional assegurado e naturalizado como tópico estrutural de instância política e social. Mas agora é preciso perceber que essa “base” óbvia do que é chamado educação está “derretendo” no mínimo na mesma velocidade do derretimento das geleiras dos pólos do planeta. Sob múltiplos olhares, com ênfase em aspectos diversos, de Anísio Teixeira a Paulo Freire, passando por Darcy Ribeiro e os vários grupos de pessoas que ajudaram a construir suas leis, a educação como projeto de Estado está inserida numa visão progressista e desenvolvimentista do indivíduo em analogia com o desenvolvimento do próprio país. O brasileiro deve se desenvolver como ser humano em consonância com o desenvolvimento do seu país, e este é concebido como uma nação mundial, ou seja, uma nação soberana em meio às outras, comparável, culturalmente, às outras. Portanto a educação, sob esse ângulo, deve estar totalmente sintonizada com os projetos de crescimento e desenvolvimento, principalmente econômicos, que geralmente acompanham os discursos governamentais. Trata-se de uma visão de educação atrelada à visão da existência de um Estado, e que este Estado seja realizado por uma entidade centralizadora, como governo, com o objetivo de proceder a regulação de suas partes constitucionais e institucionais. Ocorre que já há algum tempo, aquilo que chamamos Estado tem dado sinais de que funciona cada vez menos nesse paradigma de centralização e regulação, ou governo, no sentido amplo da palavra, qual seja, significando existência, implantação e controle de regras e leis de modo geral atendendo às necessidades da nação como um todo. Temos vivido cotidianamente vários ataques à ideia de educação como direito cidadão. Esses ataques estão resumidos, por exemplo, no trecho de uma carta pública de crítica ao governo do presidente Bolsonaro, assinada por 152 bispos da Igreja Católica no dia 26 de Julho de 2020: “Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde (...)”. De uma certa perspectiva é visível que o funcionamento social, econômico e cultural tem sido organizado privilegiadamente pelas grandes empresas de tecnologia digital, subordinando à sua lógica todas as outras grandes empresas e também os Estados na promoção de uma mutação cultural em nível planetário. Se na verdade já sabíamos que a educação sempre estivera subordinada aos interesses dos grandes capitais - e sua estruturação universal foi possível em grande parte pautada por esses interesses -, os quais englobam a propriedade e uso dos conhecimentos tecnocientíficos, agora essa mesma subordinação parece prescindir dos sistemas tradicionais de educação institucionalizados, e vem sendo substituída pelas tecnologias informacionais digitais globalizadas difundidas no uso cotidiano dos habitantes do planeta. Uma fala da cientista e ativista social indiana Vandana Shiva ilustra exemplarmente essa questão: “Percebi que algo estranho tinha acontecido no mundo, onde eu via bilionários que não eram apenas iguais aos chefes de governo, mas que na verdade os substituíam. (…) Os novos gigantes de dados digitais estão minando as nossas mentes, estão pegando-as, convertendo-as na chamada “big data” e vendendo-as de volta através do Facebook e WhatsApp e fazendo vigilância. (…) Precisamos de uma convenção sobre privacidade digital. Uma convenção global. (...) Temos que encontrar novas formas criativas de liberdade, novas ações para a liberdade, novas solidariedades pela liberdade, mas só podemos evoluir se soubermos o que está acontecendo”. O fundo do posicionamento político relacionado com o direito à educação pode ser considerado como constituído por uma base motivacional dividida em duas grandes concepções coexistentes a saber: uma concepção de educação em que a meta é formar pessoas como bons produtos sociais, direcionada ao desenvolvimento de indivíduos que possam se encaixar na ordem vigente, basicamente sendo empregados nas empresas, sabendo ler, escrever e contar e, com isso, podendo servir à engrenagem capitalista sob a aparência de sucesso pessoal e aumento da qualidade de vida; e outra concepção a saber: a que parte do ponto de vista de que a educação é responsável pelo desenvolvimento da pessoa no contexto da formação cidadã, para a participação democrática nos processos sociais a partir do cultivo da percepção das complexidades das inter-relações sociais, históricas e políticas, ao lado do desenvolvimento das potencialidades e talentos específicos relacionados aos conteúdos das disciplinas escolares, ou seja, uma concepção humanista, que vê a sociedade como produto do ser humano com o poder de interferência e modificação nessa sociedade. Na primeira concepção, o educador, pressupondo uma ordem política e social estável, tem a convicção de que deve conduzir o educando a se encaixar com sucesso nessa ordem e, na segunda concepção, o educador, pressupondo a ausência de estabilidade na ordem política e social e observando a presença de inúmeras imperfeições e injustiças no funcionamento das instituições, tem a convicção de que deve conduzir o educando ao desenvolvimento da consciência crítica de par com um senso de liberdade para o exercimento de seus talentos específicos. Ora, num momento em que o mundo nitidamente não apresenta, na manifestação das imagens possíveis de suas realidades, uma estrutura de estabilidade econômica que assegure os “empregos” ao velho modo colonialista capitalista das fábricas e indústrias do progresso econômico alavancado pela energia oriunda dos combustíveis fósseis e da extração indiscriminada de recursos naturais, ou seja, num mundo de recursos naturais cada vez mais escassos, apenas a alternativa da educação como processo do desenvolvimento de potencialidades de talentos humanos, criticidade e cidadania é que faz sentido. Mas é justamente e obviamente esse tipo de educação que, todos estão vendo, vai contra os interesses dos novos donos do mundo associados aos desgovernos estrategicamente implantados pelas grandes corporações capitalistas. Portanto parece que a educação como “área”, como “lugar”, apresenta-se agora com o aspecto de um território importante na sustentação da velha luta entre autonomia e colonialismo. Aos educadores cabe refletir sobre a opção de se engajar na educação sob o comportamento de obedientes colonizados, extasiados com as invenções tecnológicas impostas ao terceiro mundo pelo primeiro mundo, apresentadas sedutoramente como elementos civilizatórios “avançados” e totalmente desejáveis, ou optar pela visão crítica da realidade, recusando o prosseguimento do projeto colonizador e interferindo nas transformações sociais, caminhando em direção ao fortalecimento da ideia de democracia participativa e cidadã. Nesse último caso sim, há possibilidade de, por exemplo, nos engajarmos numa convenção global sobre privacidade digital. Precisamos estar atentos aos efeitos devastadores da ideologia colonizadora, que concebe as geografias e as mentes do “terceiro mundo” como espaços vazios a serem invadidos, explorados, espoliados e ocupados. Como diz Vandana Shiva: “O último passo da colonização é o que chamo Mente nullius: a colonização de nossas mentes”. Por fim, quanto à nossa relação com “tecnologia”, a antiga filosofia humanista sobre a questão do “uso” nos ilumina a questão: ela é que deve nos servir, e não nós a ela. Foto: Walter Antunes Referências: Da colonização das sementes à colonização da mente Andrea Cunha Freitas - 09.02.2020 www.fronteiras.com/entrevistas/vandana-shiva-da-colonizacao-das-sementes-a-colonizacao-da-mente?fbclid=IwAR0FAJg294akiVpopREuzsOafQqZEtwIMJGKCkIjGe3TVRAhiCjqLxroOQ4 Grupo com 152 bispos da Igreja Católica assina carta crítica ao governo Luiz Calcagno - 26/07/2020 www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/07/26/interna_politica,875673/grupo-com-152-bispos-da-igreja-catolica-assina-carta-critica-ao-govern.shtml #KATAWIXI #Katawixi #luamasocio #walterantunes #educação #educaçãobrasileira #futuro

  • Chapada dos Guimarães: no Centro da América do Sul

    Luama Socio: texto / Walter Antunes: fotografia Cachoeira, chuvisco, sol e exuberantes jardins naturais no ponto central da América do Sul: assim é a Chapada dos Guimarães. Para chegar lá, vá até Cuiabá, a bela capital de Mato Grosso, pegue a rodovia Coxipó da Ponte, trafegue por apenas 68 quilômetros e alcance a charmosa cidadezinha homônima adjacente ao Parque Nacional da Chapada dos Guimarães. Dependendo da época do ano num mesmo dia experimenta-se sol quente, vento e neblina fria, mas nada impede as excursões pelas veredas verdes que levam às cachoeiras Véu da Noiva, Cachoeirinha e Cachoeira dos Namorados, que estão entre as mais visitadas pelo público dentro do Parque. Porém a beleza e exuberância da Chapada se revelam em camadas de inesgotável maravilhamento ao explorador que vai além do roteiro básico convencionado pela administração do Parque. Isso inclui expedições ao longo dos enormes e coloridos paredões naturais, escaladas, nadar em riozinhos límpidos coalhados de peixes e sentir-se verdadeiramente num paraíso em meio a flores e plantas naturalmente “ornamentais”. A vegetação do cerrado tem essa peculiaridade de apresentar uma paisagem ajardinada, harmoniosa nas proporções espaçadas. Nessa região o visitante também se depara com uma infinidade de inscrições e desenhos rupestres, misteriosas heranças deixadas por antiquíssimos ancestrais. Nessas expedições, que podem durar um dia inteiro, somos conduzidos por guias que conhecem muito bem a região. Para se visitar a gruta “Morada das almas” e o “Lago azul”, caminha-se por um dos lugares mais bonitos que já se viu, cheio de pássaros, flores, lagartos, perfumes, fungos estranhos, matas e montes até o ponto final, uma caverna grandiosa que abriga uma lagoa límpida em que o sol projeta, através das sombras de contornos naturais, a forma de uma grande borboleta azul com reflexos dourados. Enquanto esse reflexo acontece, borboletas de verdade, pintadas de preto e amarelo, esvoaçam. Pelo “Circuito das águas” depara-se com muita água límpida e espumante, piscinas naturais em meio a uma infinidade de cachoeiras, pegadas de bichos, pedras de formatos curiosos, longas caminhadas por entre a exuberância verde e colorida. Para além dos passeios guiados também é possível se aventurar sozinho por mais outras águas e lugares: cachoeiras da Martinha, Marimbondo, Geladeira e o fantástico Mirante Morro dos Ventos, em que se deve assistir a um incrível e místico por-do-sol, pois aqui se está no Centro Geodésico da América do Sul, a uma distância de 1.600 quilômetros do Oceano Pacífico e do Oceano Atlântico. Deste Mirante é possível avistar muita coisa para além da beleza natural: garimpos, cidades e plantações de monoculturas do agronegócio brasileiro. O Parque da Chapada é um oásis ecológico ultra-necessário em meio a um gigantesco problema de desmatamento e grave poluição por agrotóxicos. A infra-estrutura ao turista é perfeita. Há pousadas, restaurantes e diversos guias. A cidade é muito simpática e bem cuidada, com uma igrejinha singela ao centro. O transporte de Cuiabá até à Chapada e vice-versa pode ser feito por um ônibus circular. Há também uma arte e um artesanato muito interessantes, todos expressivos de uma atmosfera de paz, harmonia e esperança. #lugares #katawixi #walterantunes #luamasocio #chapadadosguimaraes #KATAWIXI

  • Urbana e ancestral: a mulher guerreira de Carolina Itzá

    Semillas: onde o Zé Povinho não encosta As figuras de mulheres desenhadas por Carolina Itzá aparecem aqui e ali, em muros e exposições de bairros considerados periféricos de São Paulo e nos espaços da internet, comunicando coragem e beleza como qualidades sinônimas. A mulher que luta é a mulher em essência integrada com os elementos da natureza, da cidade, do passado e do presente. É a mulher desse país, de outros países, dessa cidade e de outras cidades. É a mulher que não recusa nada em sua história, que não foge de nada, embora paradoxalmente e, consequentemente poeticamente, apareça por vezes dizendo não e apareça também algumas vezes fugindo. Icamiaba guerreira Tem um seio só Pra flechar certeiro. No seu mergulho Nas águas profundas Dos rios de dentro Traz, pedra verde Muiraquitã Amuleto fértil do povo seu... Nunca seca. (Assim me contou Beth). Essas aparências são as expressões da presentificação da mulher universal que, através do olhar de Itzá, inevitavelmente significa-se através de luta e resistência num mundo evidentemente hostil a todos os valores do feminino. Então apesar de atravessar os tempos e espaços, essa mulher necessariamente expressa-se em figurações de guerreira desde que sua presença provoca sentidos de estranhamento e intrusão. Mascarada e nua, ela se expõe e não nega a guerra, deixando entrever as delicadezas próprias daquilo pelo qual ela luta. Vitória e mangue Em Vitória cai água do céu Evapora água entre os dedos dos pés Respiro água A toalha, nunca seca O cadarço, os talheres, o chão do busão A goteira se instalou em cima do meu travesseiro, e não adianta mudar de lugar Não sei mais se é sonho, se é o mar que resolveu levantar do leito, se as palavras lágrimas Do esquecimento O mangue pipoca ploc ploc Barulho chocalho, dias a fio Aquário de gente úmida E... Não adianta mudar de lugar. (Contracapa para o livro Cambalhota, de Silvio Diogo) Carolina Tiemi Takiya Teixeira diz que seu nome artístico, Itzá, foi inspirado na personagem indígena da escritora nicaraguense Gioconda Belli no romance "A mulher habitada”, mas não apenas isso, ela também conheceu uma mulher com esse nome, no México, e diz: “há um tempo eu procurava um nome de guerreira, buscava me rebatizar com algo que significasse esse caldeirão de luta das mulheres em Abya Yala, que influencia muito meu trabalho.” Os elementos estéticos inspirados no conceito de “Terra Viva” ou “Abya Yala”, palavra antiga, usada originalmente pelo povo Kuna para a denominação do que hoje convenciona-se chamar a América, estão presentes, nas figuras de Carolina, tanto como representação da ancestralidade, quanto como afirmação política de descolonização. Nesse ponto, as mulheres de Itzá parecem figurar a personificação dessa própria Abya Yala, irredutível, maltratada, nua e armada. Malokêras: "a rua é o meu trabalho sem padrões, a minha casa sem marido, salão de festa colorido". "Vivona", autorretrato “Eu faço tudo de forma visceral mesmo, as coisas têm que sair da minha experiência. E dialogar com quem me rodeia. É o contato direto com todas as contradições e a resposta viva a isso que eu busco. A arte é pequena, o mundo é maior”, declara Itzá. A forte conexão da arte de Carolina com os signos políticos relacionados às questões da mulher, da identidade e da periferia da cidade grande, porém, está associada à subjetividade da artista desde o começo de tudo: “desenhar foi a forma como ia preenchendo minha vida desde criança, pra não sentir solidão, pra sentir prazer, pra desaguar as coisas que sentia. Com o tempo, as pessoas em volta iam me puxando pra assumir algumas responsas, como fazer um cartaz, uma ilustração pra uma camiseta, uma banda. Eu não sabia que era artista. Foi a coletividade que eu fazia parte que foi me colocando nesse lugar, e eu fui entendendo com o tempo. Mas a virada ocorreu mesmo quando comecei a frequentar os espaços de cultura ligados aos saraus periféricos, fui colocando meus quadros pro povo ver, fui rompendo com a vergonha.” "Em fuga...", imagem a partir de um sonho que tive Rabiscando fugas A expressão técnica principal de seus trabalhos é o grafite, mas Itzá passeia por várias outras maneiras. “Também tenho um contato muito íntimo com aquarela e tinta acrílica. Tenho feito peças em cerâmica e bordado. Mas tudo o que existe, pode ser matéria pra transformar. As minhas obras têm relação profunda com a vida cotidiana”. "Segredo", fuga fértil em meio ao genocídio. Mantendo o segredo, espalhando sementes. A coletividade é um elemento importante na vida da artista. Para um futuro próximo ela vislumbra “um ateliê que possa ser um território de encontro e formação, que agregue mais gente”. Carolina Itzá mora atualmente no Campo Limpo em São Paulo. “Nasci num lugar chamado Vila Indiana, e morei na zona norte de SP, Bauru, Vitória do Espírito Santo... todos esses lugares fazem parte de mim e carrego todo mundo que conheci. Tenho 36 anos, sou formada em Antropologia pela USP e faço mestrado em Artes Visuais na UFES”. Foto: Cassimano Santos Nanau https://www.instagram.com/carolinaitza/ https://www.facebook.com/carolitza #KATAWIXI #katawixiarte #katawixiartes #CarolinaItzá #Grafite #ArteBrasileira #GrafiteBrasileiro #Artefeminista #LuamaSocio #Katawixi

  • Histórias do quilombo Ilha de São Vicente no rio Araguaia

    Dona Maria Rita; foto de Walter Antunes No meio do rio Araguaia, na região conhecida como Bico do Papagaio, está localizada a Ilha de São Vicente, uma das maiores ilhas fluviais do Brasil. Ali vivem os remanescentes quilombolas que contaram um pouco da história de suas vidas para uma equipe da Universidade Estadual do Tocantins. As personagens e suas histórias podem ser conhecidas, lidas e ouvidas acessando-se o site www.historiasdailha.com O quilombo Ilha de São Vicente é um espaço privilegiado de conservação de histórias de vidas humanas por um lado ligadas fortemente à natureza e por outro abandonadas pelas políticas sociais de Estado. A Ilha, que originalmente pertencia a um território configurado pela etnia indígena dos Araras, passou a ser habitada na segunda metade do século XIX por ex-escravizados que “ganharam” a terra de seu antigo “senhor” por ocasião da Lei Áurea e prossegue ocupada pelos descendentes desses primeiros habitantes, resistindo em suas formas de vida face às pressões do mundo globalizado, aos conflitos de interesses políticos e econômicos e à degradação dos recursos naturais. Assim, esse mesmo território que outrora fora considerado um lugar distante e adequado - segundo a ótica do senhor de escravos -, para exílio dos indesejados libertos, agora é cobiçado por inúmeros invasores e a legitimidade da propriedade é constantemente questionada pelos próprios poderes institucionais de Estado que, a despeito da existência das leis, exprime a realidade do nosso contexto de injustiças sociais. As histórias dos habitantes da Ilha vão de encontro à necessidade das vozes dos portadores de perspectivas de vida não-hegemônicas se fazerem ouvir. Pela própria constituição histórica de sua estrutura política, os saberes quilombolas tendem a ser desprezados como válidos pela sociedade padronizada dos costumes consumistas da era da globalização em massa. O fato evidente da exclusão cultural, por outro lado, tendo já sido discernido, enseja o posicionamento nitidamente favorável a um esforço de reversibilidade com vistas à recuperação de uma espécie de riqueza até então desconhecida. Os signos dos saberes dos ancestrais do povo são hoje imprescindíveis para a formação da noção de cultura e pertencimento nas mentes e corações das pessoas. Caso isso não ocorra os seres humanos correm o risco de tornarem-se cada vez mais alienados de sua própria noção de origem, do seu entorno geográfico, ambiental, cultural e político, enfim, de sua identidade, tornando-se meros autômatos consumistas da ordem econômica predadora, massificadora e desterritorializada da globalização capitaneada pelas grandes corporações financeiras. Para caminharmos em direção à construção de um entendimento amplo do conceito de cultura é necessária a integração das amplitudes plurais identitárias das construções sociais. O reconhecimento das pluralidades identitárias ocorre por meio da proteção e cultivo das riquezas imateriais tanto quanto das materiais. Atualmente não se desconhece o fato de que o ser humano - como ser simbólico na era do conhecimento científico e da predominância dos meios de comunicação de massa, propagadores de imagens e sons que funcionam como modelos universais - passa por um empobrecimento da capacidade imaginativa ativa, pois tornou-se geralmente um receptáculo passivo das mensagens massificadas. Posto isso, a disponibilização dessas histórias pretende contribuir para a dinamização entre a dimensão simbólica das poéticas quilombolas, recheadas de figuras do ambiente natural, e a construção de um conhecimento cultural que deve ser ressignificado continuamente no fluxo histórico das relações identitárias e estéticas. A dinamização entre símbolo e identidade/afetividade no nível do imaginário pode ser sentida de imediato à leitura ou audição das histórias. Por exemplo, Fátima Barros nos conta a lenda da origem dos rios Araguaia e Tocantins, em que um é “da cor da lua” e o outro é “da cor do sangue”, sendo que antes de serem rios, eles foram duas cobras. A simples consideração da força simbólica dessa descrição resgata e elucida aspectos do imaginário associados ao ambiente natural do entorno geográfico dos habitantes da região. Essa história, que foi ouvida por mim, me guiou em minhas considerações sobre esses rios e guiará, pelas imaginações, as considerações de todos os que a ouvem, imprimindo um significado e um imaginário correspondente, relacionando simbolicamente sabedorias, afetividades e identidades que são importantes na valorização e preservação da nossa cultura. Nas histórias contadas pelos habitantes da Ilha sobressaem os signos da forte conexão entre os seres humanos e o seu lugar de pertencimento para além da materialidade imediata, apontando para as formas próprias do uso da palavra, que vão desde a estética de sua linguagem até os sentidos variados de seus conteúdos simbólicos. Pela palavra, pela linguagem, o quilombo supera a limitação territorial da Ilha e comunica suas mensagens ao mundo. Os quilombolas, esses estrangeiros ancestrais em relação à cultura de massa predominante em nossa vida agora, personificam, com relação às histórias que contam, verdadeiros mensageiros das raízes de nossa história material em consonância com a dimensão do imaginário. Eles são os distribuidores dos tesouros capazes de enriquecer a visão de mundo e alimentar de esperança a alma de todos os brasileiros. O site www.historiasdailha.com tem fotos e vídeos de Walter Antunes, edição de textos e vídeos de Luama Socio, colaboração de Léo Daniel da Conceição Silva, e a participação de vários acadêmicos e profissionais da Universidade Estadual do Tocantins. #historiasdailha #historiasdailhacom #LuamaSocio #QuilomboIlhadeSãoVicente #Araguatins #RioAraguaia #WalterAntunes #LéoDanieldaConceiçãoSilva #Unitins #Katawixi

  • Um livro sobre o teatro de Gabriel Villela

    Neste belíssimo livro organizado por Dib Carneiro Neto e Rodrigo Audi a trajetória de Gabriel Villela é narrada através de fotos de espetáculos teatrais e musicais, depoimentos pessoais e textos de críticos, atores e colegas de trabalho. Gabriel Villela é um nome que dispensa apresentações no meio teatral. Em sua profícua produção, iniciada profissionalmente no final da década de 1980, vem colecionando diversos prêmios e críticas positivas com espetáculos exuberantes que derivam de textos dos autores clássicos, como Shakespeare, Schiller e Beckett, mas também de um mundo mais prosaico e particular, a partir do qual revela sua mineiridade. O livro é editado pelo selo Sesc e pode ser encontrado nas lojas das unidades do Sesc. #DibCarneiroNeto #RodrigoAudi #GabrielVillela #Teatrobrasileiro #Katawixiindica

  • A impossibilidade lógica da escola sem partido

    Obviamente a impossibilidade lógica da "escola sem partido" está enunciada no autoritarismo e repressão de um partido específico, o qual está agora no comando da educação pelo Estado. A própria ideia de educação pelo Estado foi tomada, historicamente, pelos totalitaristas, como um partido específico, e portanto agora trata-se do partido das pessoas que dizem que o Estado é seu partido e que isso é ser sem partido. Lembre-se que educação de massa só se dá pela alternativa da repressão. Essa é uma condição física da escola, como ela já ocorre, na obrigatoriedade da educação pelo Estado. Professores amorosos têm tentado driblar essa triste condição. Em muitos casos isso se torna possível. Mas o amor jamais será apenas um método educativo. Trata-se de um princípio de vida. Por causa desse princípio de vida a educação tantas vezes torna-se aliada do verdadeiro desenvolvimento humano embora inserida no contexto estrutural de opressão. Existem muitas teorias, muitas visões a respeito da educação, que alimentam o caminho profissional da cultura pelo amor. A compreensão e o entendimento profissional da educação pela ciência dessas teorias passa pelo conhecimento da existência dessas próprias visões e pelo aprendizado de pensamentos e metodologias retirados dessas teorias consideradas como conhecimento oriundo de fontes de sabedoria. Vemo-nos, não obstante, numa condição terrível, de ter que defender a própria existência da escola, pelo Estado, nos seus moldes comuns e totalmente insatisfatórios, para que não se tire toda a esperança de uma população historicamente oprimida. A relação da educação com a sociedade, com o Estado, com a política, deve estar sempre à vista. Os olhos do profissional não podem perder de vista jamais a contemplação desse ponto da estrutura das relações sociais. Em matéria publicada em 31 de Outubro de 2018, o portal G1 traz o seguinte título: "Sintonia eleitoral: brasileiros se dividem sobre liberdade para professores ensinarem diferentes perspectivas políticas". Segundo o portal, trata-se de uma conclusão retirada de cerca de 500 respostas a um questionário feito por uma empresa canadense, contratada pelo portal, para fazer a pesquisa durante a época das eleições presidenciais de 2018. Os gráficos mostram um empate impressionante nas posições antagônicas. Em torno de 31% concorda muito que os professores devem ser livres para ensinar perspectivas políticas diferentes e 30% discorda muito. Entre os que concordam com a liberdade há uma ligeira maioria de mulheres, e entre os que discordam muito há uma ligeira maioria de homens. O descalabro na dimensão ética com respeito a esse assunto foi sentido por uma grande parte de adultos responsáveis do país. A dimensão ética deveria ser pautada por uma percepção precisa das estruturas de relações sociais, e em primeiro lugar, das relações de trabalho. Um diretor de escola da rede pública, um professor - assim como quaisquer outros profissionais de quaisquer áreas em qualquer lugar do país - se pensa de si que é apenas um diretor ou um professor, não está sendo plenamente responsável. Ele tem que saber - percebendo o tempo inteiro -, de qual estrutura faz parte: por que a escola existe, qual é o objetivo da escola; como a escola veio a existir nesse mundo; quem inventou, quem criou essa escola. A percepção dessas questões é da máxima importância ética. Conheci professores que não possuíam uma imagem - ou imaginação - razoavelmente clara a respeito da estrutura comum dos departamentos públicos de Estado, incluindo a escola, com suas respectivas funções. Conheci um chefe de pátio de “centro educativo” para adolescentes infratores que não sabia onde o sol nascia e se punha tendo por base o quadrado superior do campo do pátio. O não percebimento das relações sociais, políticas e ambientais em que se está inserido produz uma fragilidade estrutural séria no próprio sentido da existência profissional. Chama-nos a atenção o fato de que os profissionais da educação revelem-se tão impotentes na defesa de suas profissões. E isso, definitivamente, não precisaria ser assim. Parece-me que seja gravíssimo quando as pessoas se alheiam, não sabem onde estão, a começar do ponto da crua percepção espacial. Chamo de grave um nível de percepção bastante baixo na esfera das relações humanas, agenciador de uma série de obscuridades psicológicas. Talvez este seja um dos fatores que fazem com que muitos adultos responsáveis tenham a sensação de estar no meio de pessoas dementes quando num sistema democrático as “massas” escolhem o que é pior para elas mesmas: o pior nesse caso significa escolher participar o menos possível do governo da comunidade humana, iludindo-se de que já se está fazendo o máximo da obrigação cidadã votando em representantes do povo ao governo, sobre os quais não se sabe suficientemente. Entre as graves distorções conceituais veiculadas em meio à diversão emocionante dos incautos nas últimas eleições destaco a identificação de "ser consciente do sistema de governo e reivindicar o direito ético à participação" com "ser comunista". A distorção intencional de muitos conceitos importantes culturalmente e historicamente é diametralmente oposta à missão do professor, à função da educação. O simples conhecimento a respeito do sentido histórico e simbólico da palavra "comunismo" no nível do conteúdo de Ensino Fundamental bastaria para desfazer qualquer confusão caso a uma pessoa faltasse o senso de espaço e tempo. Por pura fanfarronice eleitoreira houve a colaboração na destruição da credibilidade dos dados inerentes aos sentidos básicos da mente humana: os sensos de espaço e tempo. O fato de termos direito à consciência de espaço e tempo em nível social e terrestre foi sacrificado aos sentidos do medo e da propaganda manipulados pelos engenhos trans-humanistas. O direito a essa consciência, que deve ser desenvolvida por toda educação, e que deveria estar altamente desenvolvida em todos os professores e educadores conduz obviamente ao direito legítimo de se perceber e de se interessar por mais coisas além do que se alcança com o próprio “nariz”. Temos o direito de saber das relações entre coisas que consideramos distantes e coisas próximas. A verdadeira ingenuidade está, no entanto, no entusiasmo com as tecnologias dos aparelhos de computação substituindo professores e escolas. Sabe-se que embutido nesse entusiasmo está o interesse de corporações que pretendem lucrar com equipamentos e tecnologias específicas. Porém essa explicação não parece sensibilizar grandemente uma considerável parte das pessoas. Há uma tendência em discutir o assunto em nível pseudo-filosófico, desviando a identificação das verdadeiras intencionalidades para o relativismo de valores no raciocínio dos que estão efetivamente ausentes do poder político. Mais do que nunca o quadro delineado pela “querela” da “escola sem partido” anuncia a imensa necessidade de educação para crianças e jovens - para TODOS eles -, caso se pense como um educador ou professor do Estado. As intenções devem ser desenvolvidas, desveladas, desdobradas, decifradas. Apenas com o elemento educacional sistematizado torna-se possível a cultura e o entendimento das intenções nas relações sociais e a produção de poder real pela população. Em tempos comuns seria redundante e ingênuo constatar que não é possível estimular o desenvolvimento ou educar o corpo, as emoções, os pensamentos e o senso crítico de crianças e jovens sem professor, sem escola, e suas específicas intenções. As máquinas informacionais tais como os computadores, livros, interação virtual por correspondência seja em meio eletrônico ou papel, não são suficientes para educar ou estimular ninguém simplesmente porque são incompletos, inflexíveis e rígidos, comparados à presença condutora de outros seres humanos. É uma verdadeira loucura – no sentido de aberração grotesca - pensar a educação como “adaptação” das crianças e adolescentes às máquinas. Esse falso raciocínio sobre a educação promove apenas deformidades e não desenvolvimentos porque a máquina é sempre menor que o homem, por mais que pareça o contrário. As máquinas informacionais são suficientes para objetivos específicos de aquisição de saberes na esfera do mundo adulto, ou seja, na esfera do aperfeiçoamento de habilidades anteriormente adquiridas. Isso deveria ser de uma obviedade retumbante para os profissionais da educação. Sobre as teorias do medo e do dinheiro como alternativas explicativas a respeito da loucura geral da nação não precisamos falar aqui. Muito se tem falado e explicado sobre isso incessantemente por vários professores em todos os meios de comunicação disponíveis à nação. Uma pergunta que os professores deveriam se fazer é: por que a ignorância a respeito das relações sociais estabelecidas deve ser protegida. Assinalo insistentemente que não é possível aceitar a tese de que muitos professores têm medo do “comunismo”. É impossível que qualquer professor no Brasil, de boa fé, não saiba nada sobre essa palavra e ainda esteja no nível de compreensão de vítima de propaganda enganosa nesse assunto. É preciso estar ciente de que vincular o direito à percepção dos processos sociais à permissão de autoridades do Estado é uma formação conceitual espúria. É verdade que Florestan Fernandes descreve o ânimo crítico e o entusiasmo pelo "saber" por entre o povo nos inícios da revolução comunista em Cuba; é verdade que o artista chinês Ai Wei Wei, por esses dias atrás, num programa de televisão disse que o comunismo de Mao se preocupava em formar o senso crítico. Mas essa questão da consciência, da percepção, é facilmente sequestrada por qualquer sistema de domínio. Vincular um fenômeno a outro - vincular o direito à percepção a uma ideologia política específica - é um tipo de pensamento que está fora de qualquer paradigma de construção conceitual. Esse tipo de vinculação espúria apenas promove uma deterioração do campo da ordenação conceitual que se reflete em interesses políticos. Conceitos degenerados não "moldam", não constroem nada. São instrumentos/armas/venenos de forças dominadoras que se acham a salvo do destino humano. São as ações dos proprietários das gigantescas máquinas moendo ração para animais destituídos de inteligência humana. É importante, para professores, ter a capacidade de formar, em seus próprios entendimentos, imagens baseadas nas formas físicas reais das coisas, para poderem estimular nos alunos essa mesma capacidade. A simples percepção e contígua reflexão pessoal a partir das categorias mentais de tempo e espaço leva ao conhecimento de que há compartilhamento de espaço e de tempo. É obvio que a percepção de um "eu" como centro do conhecimento pode prescindir dos interesses de sua personalidade pelo tempo da reflexão, ou seja, é óbvia a capacidade do ser humano refletir, imaginar e pensar sobre assuntos mais amplos do que as preferências de sua personalidade. Pertencer a uma classe profissional já é uma ampliação de si. Se o professor não tem consciência disso, eis aqui um belo problema ético. Quais têm sido as pessoas que nos tem impedido de percorrermos as camadas de sentido a que dão direito nossas percepções, seja de signos, seja de sensações? Ou quais são as pessoas que têm ditado o que deve e o que não deve ser percebido? #Educação #Escolasempartido #LuamaSocio #Katawixieducação #KATAWIXI #Katawixi

  • Eles estavam necessariamente estupefactos

    Pois prossegue a conversa entre Walker Dante e Roselena. Walker Dante - É claro que fiquei tremendamente estupefacto ao perceber que as pessoas poderiam achar outra coisa do meu cristianismo, e também fiquei espantado de perceber cruamente o nível baixo e abjeto das pessoas à minha volta quanto à sabedoria moral de se viver em sociedade. Se Jesus, o Cristo, disse em primeiro lugar, amar a Deus sobre todas as coisas, isso significa reconhecer uma vontade maior, à qual eu reconheço que a minha está submetida, pois pela minha inteligência percebo que quero e consigo várias coisas e percebo que quero mas não consigo várias coisas e tem uma imensidade de coisas pelas quais não me interesso, mas que existem, e exercem influências, e fazem parte do mundo. Então nasce em mim a humildade. Ela é um traço psicológico da força, porque o humilde não se abate, segue em frente pelos desígnios de Deus. E Jesus, o Cristo, diz em segundo lugar, que deve-se amar ao próximo como a si mesmo. Ou seja, não fazer diferença entre a esfera do seus limites corporais auto-físicos e as percepções desse corpo, consideradas em uma distância sensitiva maior, englobando a transferência dos dados dos sentidos para as áreas da memória e imaginação. Em suma, isso que Jesus, o Cristo, ensina segundamente quer dizer que todos somos iguais, portanto somos efetivamente, realmente, um corpo unido. A humanidade é um corpo, bem como faz unidade com tudo o que esse corpo também percebe: as plantas, os animais, o ar, a terra, a água e o fogo. Enfim, a minha estupefacção é ter-me descoberto em meio a humanos que nem de longe tomaram a esses ensinamentos como princípios. Vivi entre cristãos falsos. Esses princípios implicam a transformação instantânea da sociedade em paraíso. Todos livres, exercendo a beleza de suas liberdades, de tal modo que, evidentemente, sendo assim a sociedade extremamente rica, bela e talentosa, não se faz necessário Estado, guerra, opressão, política, tal como ela se entende nessa terra de demônios. Fiquei realmente chocado enfim, por ter tanta gente à minha volta que em nome de uma lógica obscura relativiza o maniqueísmo. Sendo que justamente o que se anuncia é a evidência da redução das relações simbólicas entre os humanos a esse tal maniqueísmo, a tomada de partidos e posições antagônicas num fluxo insano subtraído aos princípios ditos cristãos. Roselena - Eu te acho uma pessoa descaradamente metafísica, até religiosa, embora pareça muito sensível. W.D. - Esse princípio cristão, dogma, é um núcleo duro do meu direcionamento mental, eu o percebo bem. Porém ele não parece assim. Justamente aqueles em quem esse núcleo não existe, ou é mole, parecem duros. São os brutos das armas. E eu, pareço mole. Roselena - Porém o argumento religioso nesse nível das questões políticas não deixa de ser uma posição fraca justamente porque ela não tem nada a ver com a tomada, manutenção ou perda de poder. No paradigma maquiavélico é certo que não se faz distinção racial entre os dominadores e dominados no sentido de que uns seriam humanos e outros não. Participar do poder político envolve uma diferenciação de nomes que distingue perfeitamente os poderosos, os donos do poder, do resto das pessoas. Não existe a possibilidade de haver um olhar de "semelhança" entre as partes dessa estrutura. Toda a situação em que nos encontramos agora, reunidos nas cidades do planeta dessa forma, não é simplesmente, naturalmente, o resultado do desenvolvimento da humanidade. Nossa "cultura" global, atual, no grosso, é apenas a consequência de projetos de poder sobre recursos materiais - ou seja, recursos da presença da vida no planeta Terra - se delineando nas formas de vida possível ao "homem" agora. Todas as "culturas" do planeta foram invadidas, atacadas e dominadas, e todos os remanescentes se espalham, tal como espirros, pelas cidades do globo. E essas culturas não foram pulverizadas em consequência de um embate de força entre seres de culturas diferentes porém equivalentes em força e poder. Os imigrantes, os pobres do planeta, não são vistos como pessoas, nem como animais, nem como plantas, ou como qualquer coisa digna valor. Eles são vistos, pelos poderosos e suas extensões trans-humanas, como obstáculos à existência de uma instância bastante misteriosa do ser dos poderosos. É por isso que não existe a mínima chance de conectar a visão cristã com a política. Uma coisa se opõe à outra. O cristianismo como princípio ético, e não simplesmente religioso, seria uma alternativa de ausência de política. É por isso que, evidentemente, está morto (desde antes dos anúncios de Nietzsche). O “cristianismo” definitivamente parece não ter nenhuma força real de penetração no mundo mental do "humano" de agora. Pois que também já não há nem mesmo essa coisa de "humano". Agora é trans, pós e... quiçá, super. Os filósofos não se cansam de analisar diferenças entre conceitos de massa, povo, cultura, etnia, grupo, nas teorias sobre as estruturas de poder dos Estados atuais - cada coisa dessa em seu próprio escopo de tradição conceitual – e por fim esse lado da balança política não é meramente pólo oposto de poder no "jogo" político, mas sim a complementaridade da dominação. A rigor não existe esse jogo para nós, que nos consideramos humanos, ou cristãos. Todos sabem que o Trump não vai simplesmente à guerra, não faz simplesmente a guerra, porque em hipótese alguma ele perderá alguma coisa. Trata-se apenas da atividade de uma forma de vida. Essa personalidade constitui-se apenas como uma função dos integrantes do clube que joga o xadrez dos destinos das riquezas materiais do planeta. Então aqui não há humanismo, ou humanidade. Quando a Simone Weil fala que a causa da guerra está no fato de que "cada homem, cada grupo humano sente-se com razão legítimo senhor e possuidor do universo, digo que essa posse é mal compreendida, por não se saber que o acesso a ela - na medida em que é possível ao homem na terra - passa, para cada um, por seu próprio corpo", quando ela fala isso... tal coisa só é possível a partir de uma filosofia humanista. Porém agora estamos na situação em que não há nem mesmo esse "corpo" de que a Simone fala. A condição da corporalidade, hoje, é efetivamente uma ausência. Mesmo os que já tiveram algum corpo o perderam, embora muitos estejam aparentemente vivos. Grande parte dos corpos hoje funciona como apêndices das máquinas de dominação. Esse é o fato real trans-humanista. Não se pode ter medo de contemplar isso. Aos ainda humanos é preciso haver a força dessa contemplação. W.D. - Justamente por isso o modo de raciocínio pela polaridade de visões a partir de um ponto de vista comparativo não é suficiente para determinar o juízo moral a respeito da questão da tomada de partido. O juízo moral ocorre contíguo à função da identidade do “eu”. Toda aquela teoria do amadurecimento da identidade básica da personalidade tem pertinência na elucidação do enigma moral envolvido na escolha de um modo de estado com os resultados dessas eleições dos políticos cargos executivos do Estado em 2018. O "eu" real só é possível com o humanismo... e isto já não ocorre... Roselena - Eu sei, você está querendo dizer que... o fato de estarmos estupefactos não tem a ver com o nosso próprio partidarismo, o qual passaria por uma eventual discordância superficial de ideias com outros eleitores. Discordância do tipo: desejar isso ou aquilo na esfera política. Eu sei que você, por exemplo, não quereria pensar dessa forma a respeito da preservação da natureza - essa seria apenas um objeto de mais uma ação específica. Você quer dizer que votou para que o país fosse mais aquecido economicamente, votou por mais gente trabalhando, mais gente produzindo e consumindo bens culturais de todo tipo. Você pensou que as pessoas soubessem o que era mais adequado para si próprias na continuidade da vida. Que a natureza ou a vida econômica não seriam conceitos simplesmente elimináveis, mas sim objetos culturais definidos, inalienáveis. Essa mentalidade é precisamente o que todos acham que seu voto produziu. Ocorre que grande parte dos votantes são pessoas que se preocupam em ser devotas a um patrão que elas acham que têm. São basicamente inconscientes dos objetos culturais que deveriam ser considerados bens inalienáveis. Não há a compreensão do Estado como um projeto de sociedade por parte da população votante. Todos sabemos que os produtores rurais, por exemplo, embora sejam "proprietários" de suas terras, quase nunca pensam com a própria cabeça. Estão sempre obedecendo a um patrão. Isso, no fim, é a única realidade percebida. Há uma ânsia em obedecer ao pastor, em fazer as coisas certas diante da aprovação de uma autoridade. Isso vem desde sempre, desde a Idade Média, e no Brasil vem desde que Brasil existe. Vê aquela cidade em Santa Catarina em que cerca de noventa por cento dos votantes escolheram um rato para presidente do Brasil simplesmente porque identificaram nele o papel da verdadeira autoridade. W.D. - É que me pareceu que um simbolismo dos mais abstratos e arcaicos como o maniqueísmo emergiu em cruas linhas solapando qualquer contexto de complexidade. De repente o cenário cultural empobreceu drasticamente, numa espécie de hecatombe desertificante. A questão da polarização partidária, embora esteja circunscrita estruturalmente a um modo específico da forma de pensamento tradicional, qual seja, a forma da antiga categoria da polaridade, conduz grosseiramente à consideração moral do ultrapassado "relativismo" como baliza da bondade porque apareceu justamente sob as alegorias rudemente contrastantes do maniqueísmo. Exemplo disso é a facilidade com que se passou a relativizar o fluxo visível de conteúdos associados à morte e à vida. Independentemente de quais imagens ilustram um crescimento e um decrescimento de um núcleo de interesse, nessa acepção, esse contraste é capaz de refletir um lado do partidarismo, que oscilará de imagem em imagem ao infinito dos seres. A alguns, a estagnação econômica do país leva à paralisação ou à extinção de alguns negócios e acaba beneficiando aquilo tudo que será deixado pelos negócios. Um aspecto da morte da imagem de uma das posições é vida para o outro ponto de vista. Sabe-se, através do simples senso comum que, deter-se na comparação de dois pontos de vista produz, no nível da moralidade relativista, uma paralisação do juízo como expressão da liberdade do "eu". A função de comparar não pode se imiscuir na função da vontade, que deve ser a expressão livre da energia para a tomada de uma posição, de um ponto de vista. Esse relativismo moral foi uma falácia horrorosa, nitidamente maniqueísta, abstrata e rasa nos argumentos consoladores diante do resultado das eleições. No plano do discurso, há o esforço dos analistas em exemplificar uma pretensa pluralidade de pontos de vista, mas isso não quer dizer que se está indicando as premissas de um jogo com "dois pontos de vista". Esse plano não é o estabelecimento das regras desse jogo. Roselena - Talvez a massa tenha um sentimento obscuro de sabedoria ao qual pensa estar servindo. Talvez se considere detentora de uma energia sábia que apenas será acionada quando o aprendizado nas escolas públicas limitar-se a conhecimentos ditos úteis ou técnicos aprendidos à distância, pelas emanações esotéricas dos senhores ocultos do mundo. Parece que a esperança num alto comando misterioso, à distância, como quer a ideologia da "escola sem partido" seja a solução cultural para equipar a mente de um bom empregado das lojas do comércio - para isso basta aritmética e um português elementar -, ou um pequeno operário de uma fabriqueta qualquer. Não se cogita na existência real de todas as formas sociais que a essa força oculta a sabedoria servil alimenta, no que ela consiste em sua efetividade. Digo "não se cogita" em nível do povo "inocente". Obviamente há toda uma considerável e respeitável literatura esclarecida a respeito de todas as estruturas e meandros de poder, totalmente disponível a quem quer que seja que não queira ser inocente. W.D. - Torno-me incessantemente a me estarrecer. Nos transtornos desse incrível mundo chama-me a atenção a questão invertida da identificação do conhecimento justamente com a falta de liberdade. Segundo a opinião da massa, imposta por alguns poderosos propagandeadores, é o conhecimento, o aprendizado, que leva à opressão do dono da caixa de abelhas e não o contrário. O conhecimento de um professor, por exemplo, é desqualificado como algo útil para o convívio social, e passa-se a seguir o comando político de servidão material a segmentos delimitados por aquilo que é identificado como governo. O pavor à independência, liberdade, florescimento das riquezas no nível da vida próxima, ou seja, da vida do corpo, das pessoas à volta, da natureza à volta, ou o nível de sensação de insegurança nessa esfera, ou seja, o baixíssimo nível de percepção física e sensibilidade psicológica, esse nível baixo da massa, é que me tem chocado. Dá-me a contraditória impressão de que a cultura, aparentemente abundantemente dinamizada pela informatização tem sido insuficiente para os próprios humanos. É por isso que estamos estupefactos. A Estamira, uma personalidade vivente de um lixão, personagem de um filme famoso, muitíssimo inteligente, aponta para todos os "trocadillos" que vão invadindo seu espaço mental. Ela explica bem as caraminholas contempladas pelos seres que habitam o fim do mundo das formas, o lixão. Ela ilustra tão bem esse momento. Roselena – Ela ilustra… mas sempre dentro do confinamento inútil da expressão da sua personalidade. A sua exemplificação já configura a característica dessa nossa era da autoconfiança que se forja em nível de representação espetacular inócua. Essa era inútil de celulares, fotos, audios e filmes. Uma auto-confiança que aparenta a legitimidade de uma coragem que se desnuda transpassa a técnica de representação das tais práticas estéticas e floresce igualmente na expressão do ignorante e da genuína autoridade. O apagamento das diferenças, essa "transparência", definitivamente nos parece ser algo do "mal", a considerar essa sua abstração maniqueísta proposta há 30 anos já pelo Baudrillard. Claro, perceber isso nitidamente não deixa de ser chocante. A autoridade, o autor da representação, a intencionalidade estética, deveria surgir, tradicionalmente, de um sentido de auto-conhecimento e consciência da influência que um humano exerce sobre outro. A autoridade, com tudo o que isso implica moralmente, envolve o sentido de responsabilidade pelo destino de outras pessoas, ou de um espaço, ou a consecução de um projeto, que faz parte de um universo de ideias. Ideias sobre o que é o mundo, a sociedade, as pessoas, etc., no sentido político de saber determinar o que é melhor e o que é pior. A régua moral está intimamente ligada ao conhecimento, todos os filósofos sabem disso, e as tentativas para separar essas duas coisas são infrutíferas. Por isso é uma violência, uma afronta, uma calamidade, a população - que deve ser ensinada -, querer ela mesma ensinar aos professores, ou os pacientes quererem ensinar ao médico. A desmoralização de todos os saberes é um dos pontos abordados pelos explicadores do fascismo e da barbárie como focos de sentido de desenvolvimentos da organização social. Os teóricos que já vêem a humanidade como uma caixa de abelhas, certamente explicam a inutilidade do conhecimento, no nível comum de existência, e a esperteza e sentido lógico que existem na inteligência bárbara da conservação de um modo de existência que paradoxalmente cultiva a morte da humanidade. Porém a isso adiciona-se as técnicas de reprodução estética disponíveis às massas, que as usufruem espontaneamente, entusiasticamente, em seu próprio nível, reproduzindo na verdade a mesma irresponsabilidade de quaisquer meios de comunicação de massa desde o século 19. Essa questão da responsabilidade, da autoria nunca passou de possibilidade teórica. Ocorre no máximo em áreas poéticas, as quais não contam para nada em nível de efetividade educativa ou prática na vida social. W.D. - Trata-se de repente de uma nação de malvados, implicantes e intrometidos, sem respeito à dignidade alheia por puro parvo egoísmo. Porque há egoísmos menos parvos, menos servis. Roselena - Você está emocionalmente bastante abalado. Mas como também estou, concordo: uma pessoa tola nessas questões políticas é tomada como esperta, caso seja bem-sucedida financeiramente dentro dos padrões pequeno-burgueses. É tomada por esperta apenas por fazer parte de um clube de falastrões que não se importam verdadeiramente com política. É gente que se acha importante em seu pequeno domínio, o qual é mais do que suficiente para o orgulho de sua pequena existência. Essa gente não se sente ameaçada pela sociedade e nem pelo Estado em suas condições normais. W.D. - Mas essas pessoas, aparentemente, poderiam ser portadoras de um bom senso extremamente acessível. Por exemplo, eternamente se associa a questão do simples respeito a um espaço necessário à existência de um corpo, com uma questão política, quando isso poderia não ser o caso. Na esfera das propriedades particulares, o respeito comum mostra que a necessidade da maioria dos seres humanos quanto ao seu próprio espaço é suficientemente regulada para haver espaço para todos os 8 bilhões de humanos no planeta terra. A Simone Weil está certa quanto à motivação íntima, primitiva, do povo não amadurecido, como início psicológico da guerra. Mas essa motivação é totalmente insuficiente e inadequada para a efetivação de uma mentalidade elementar de respeito. É totalmente possível, ao humano, não invadir o espaço do outro, e viver bem. Os políticos, donos do Estado - ou seja, da unidade nacional em nome do manuseio dos recursos retirados dos impostos à população - não têm o poder e não almejam o poder de resolver querelas de proprietários particulares. O governo tem as suas próprias propriedades. Qualquer outra pode ser arrebatada pelo governo, já que a única qualidade reconhecível do governo é realmente a violência. Esse assunto é problematizado ao infinito pelas Ciências Sociais e, por fim, a violência e a cultura de morte acabam sendo naturalizadas tanto pelo senso comum quanto pelas estruturas explicativas das ciências. Roselena – Você e seu "cristianismo"... então concluímos que, como a maioria do povo brasileiro decidiu que o Estado é propriedade particular das pessoas escolhidas por ele, nunca saberemos dos meandros obscuros das guerras comerciais que ocorrem entre os grupos dos ricos proprietários desse Brasil varonil. Se esses grupos vão deixar as plantas crescerem, as abelhas existirem, ou se vão intensificar a desertificação, e por quais meios isso será realizado, permanece um desses hermetismos do poder. Tem uma galera canibal que espera se esbaldar com rios de sangue. Meu mestre já havia falado sobre o recrudescimento do fascínio pelo horrível através dos novos tempos… há cem anos. #Filosofia #Filosofiabrasileira #LuamaSocio #FilosofiaKatawixi #KATAWIXI #Katawixi

  • A vida de Tomás que morreu com a alma à flor da pele

    De noite Tomás acordava sobressaltado em sua cama das muitas voltas que dava em si mesmo enquanto dormia, isso quando realmente dormia e não ficava a madrugar os fantasmas da noite, confabulando histórias dos outros e de si para consigo mesmo. Durante o dia, devaneava entre as coisas e pessoas, entretempos e contratempos: parava qualquer atividade e olhava ao derredor da existência, se perguntando pelos sentidos de cada pequeno gesto, cada pequena vivência até ao ponto de desfalecer os sentidos e abrir os olhos poéticos para os cachorros cheirando o lixo, pombas pousadas nos fios elétricos, senhoras conversando nas portas das casas. A cada dia, Tomás contraía mais alguma coisa da vida: doía-lhe o peito em nostalgias das coisas inexistentes, dava-lhe a febre das palavras inauditas e chorava pelo irreversível. Foi se consultar, "doutor, diz-me que coisa é essa que me sacode inteiro, estrebucha como um peixe no anzol fora da água, esse som aqui dentro, que mais parece um pássaro engaiolado". O doutor auscultou o seu peito, examinou os olhos dele, tirou a temperatura, mediu o peso, ouviu suas histórias e convicto lhe sentenciou "o senhor tem alma e sofre de querências." "É grave doutor?" "Irreversível seu Tomás, viverás para sempre com isso até que suspire o último ar, somente posso dar-te o paliativo da dormência, para diminuir os sacolejos e olhares das coisas." No entanto, logo depois que Tomás saiu do consultório, viu uma criança chorando a perda da vida que não teria, aconchegou-se a ela e contou fábulas da sua vila e acarinhou o coração da pequena que lhe sorriu e se aninhou nos braços mais suavemente. Decidiu que morreria de calmarias ainda que tivesse os sobressaltos constantes das tardes lúgubres e das belezas que atingiam o peito causando tumultos na inconstante alma. Ao cabo das noites, abriu-se um buraco negro nesse mesmo peito que a tudo sugava para a sua alma, que dilatava aos olhos fantasmagóricos de suas companhias, às vezes engasgava de tanta coisa que lhe ia por dentro, e os outros achavam que era quase translúcido e grave como um profeta. Por fim, um dia a alma se despedaçou toda e Tomás suspirou o último ar de uma noite fria de inverno, nos braços sepulcrais das companhias envoltos nas belezas das coisas que vira e sentira em sua vida. Thiago da Silva Prada, nascido em 1985 na cidade de São Paulo, a Grande Esfinge devoradora de Homens. Tem uma queda pelo Romantismo, se debate com os monstros da Razão, mas cumprimenta os que estão debaixo da cama. Formado em Psicologia, com pós em Filosofia Contemporânea e Mestrado e Doutorando em Ciências Sociais, apaixonado por Literatura e Cinema, é professor, palestrante, escreve por necessidade existencial e é leitor por ofício de vida. Publicou dois livros de poesias, “Os Céus de Van Gogh” e “Da Noite Sem Fim – poéticas sobre tristezas e assombros” pela Caligo Editora e o livro de mini contos "As Feridas do Cotidiano & Algumas Belezas Frágeis", através da Editora Penalux, do qual o conto acima faz parte. Compre o livro pelo site da editora Penalux: www.editorapenalux.com.br/autor/MzQz/Thiago_Prada Saiba mais sobre Thiago Prada: Linkedin: br.linkedin.com/in/thiago-prada-3920863b​ Lattes: lattes.cnpq.br/0379461783029607 #ThiagoPrada #ThiagodaSilvaPrada #AvidadeTomásquemorreucomaalmaàflordape #Literatura #Literaturabrasileira #Contobrasileiro #Contobrasileirocontemporâneo #Minicontobrasileiro #EditoraPenalux #Asferidasdocotidianoealgumasbelezasfrágeis #KATAWIXI #KatawixiLiteratura #Katawixi

  • Das bibliotecas e livros e seus efeitos anímicos

    As bibliotecas das pessoas e dos escritores permitem deduzir afinidades e gostos, influências e inspirações; todavia, a menos que haja anotações e referências, não saberemos bem o que foi lido e apreciado, repelido ou assimilado. É rara a casa que não tenha a sua estante de livros, poucas as pessoas que não recorrem aos livros para aprender, comungar ou evadirem-se. E se houve escritores que tiveram poucos livros, ou que leram com dificuldade em bibliotecas públicas ou de outros, muitos há que se viram rodeados de boas companhias, podendo navegar em diferentes cursos psico-energéticos e atingir certas intuições, compreensões e visões novas, originais, que acabaram por se incorporar nas suas almas e escritos e eventualmente em quem os ler… Assim, cada casa, cada pessoa deveria ter uma razoável biblioteca para a evolução pessoal sua e da Humanidade, ainda que, nos tempos modernos, os computadores e a internet sejam por vários modos, nomeadamente por possuírem já descarregados ou reproduzidos milhares de livros, excelentes bibliotecas globais, ainda que virtuais e logo com certas limitações… Em verdade, os livros, com todas as suas sutis particularidades, desde os autores aos assuntos, das datações às dedicatórias, das encadernações e ilustrações às anotações ou marginália, do tato ao cheiro do papel, são preciosos companheiros para quem quer aprofundar os mistérios e maravilhas do universo e da humanidade e, particularmente, para os estudantes, pensadores, escritores, historiadores, investigadores, criadores, comunicadores. Todos nós sabemos quanto podemos receber psico-somaticamente ao manusear e ler com atenção, gratidão e amor qualquer obra que a sabedoria dos séculos nos lega, ou nos permite aceder, e com ela viajar no tempo e nos mundos psico-espirituais nos quais tantas riquezas há para suprir as necessidades da Humanidade, ainda tão mergulhada na ignorância, na violência, no egoísmo, no sofrimento, ou manipulada para tal por forças anti-culturais, anti-libertadoras... Podemos dizer então que cada livraria ou biblioteca, ou livro é uma mezinha, um medicamento para harmonizar e curar, um fermento de transformações, uma semente de novas manifestações luminosas e benéficas, uma defesa face à invasão manipulante e massificante que nos rodeia... O livro no seu suporte de papel, pergaminho ou papiro, pela sua durabilidade e pela sua proximidade e intimidade, será sempre então um dos melhores instrumentos de harmonização e elevação humana e como tal o presente ideal que as pessoas oferecem e acolhem, lêem e anotam, criticam ou amam. Quando entramos na casa de alguém muitas vezes a nossa primeira impulsão é ver as obras contidas nas estantes, o que essa pessoa leu ou mostra, e a partir até de uma mera vista de olhos (se for de conhecedores) poderemos intuir algumas das características das pessoas que os juntaram, leram, possuíram, amaram... Constituirmos a nossa própria biblioteca, e saber ordená-la, e ter mesmo em destaque ou mais fácil acesso as obras que mais nos tocam ou com as quais mais trabalhamos, ou os autores com quem mais sintonizamos, é então importante, construindo-se assim ilhas valiosas coesas no mundo sutil da Grande Biblioteca Mundial, às quais podemos até convidar a desembarcarem pessoas amigas a fim de desfrutarem da sabedoria e dos prazeres que tais fontes vivas nos transmitem. Todos sabemos como algumas bibliotecas se transformaram em quase ilhas utópicas, até no sentido que pela sua singularidade, beleza e raridade não podem ser facilmente acedidas, reforçando-se assim a sua aura, a que hoje as imagens livres virtuais na Web ainda mais realçam, ainda que desvendando-a incompletamente, sem a verdadeira energia do local e dos livros palpitantes ao vivo... A Biblioteca de Mafra, a da Universidade de Coimbra, a da Academia de Ciências de Lisboa, a Vaticana, a de Paris, a do Escorial, e outras famosas, serão algumas das mais notáveis. Mas não devemos menosprezar as apenas nascidas da bibliofilia de alguma alma mais entusiasta, outras nascidas de legados post-mortem, destacando-se nestas as que tendo pertencido a escritores ou investigadores, e não foram dispersas em leilões ou passadas a diferentes instituições, conservam a sua autonomia, diríamos mesmo a sua individualidade, especialmente quando se mantêm no local onde sempre estiveram, rodeadas da memória sutil dos momentos em que as mãos do escritor ou dos seus amigos manusearam os livros, dialogando-o com eles e de mais vida e alegria os inundando... Não há ainda máquinas digitais que consigam medir a intensidade vibratória que cada livro de uma biblioteca ganhou pela passagem nas mãos, pela leitura, pelas anotações, pelas trocas psico-energéticas desencadeadas a partir do tabuleiro de xadrez da impressão invertido na cabeça das pessoas e sentido e compreendido na alma em compreensões, intensificações e iluminações… Alguns de nós, todavia, já terão certamente feito uma contemplação por momentos de uma estante a certa distância antes de se aproximarem e acolherem o livro que lhes pareceu mais vibrar ou os chamar. Certamente quando temos seis ou sete prateleiras à nossa frente deveremos escolher uma e depois até ir passando os olhos pelas lombada dos livros vendo-os a vibrarem e tentando discernir qual é o mais palpitante e tremeluzente que se quer dar às nossas mãos, para depois identificarmos quem o escreveu ou mesmo o anotou e quer diálogos, continuadores, e logo mais luz e amor no planeta. Talvez o melhor ainda seja depois dessa passagem ou entrada dos olhos-mente num um-a-um, ficarmos numa percepção desfocada de todos e abrir mais o coração e tentar sentir qual é o que mais nos envia os seus raios, qual é o que mais nos impacta invisivelmente e nos quer fazê-lo arrancar do seu pouso à sombra, quem sabe se já longo, e trazê-lo a mais luz solar e amorosa que o ambiente e os nossos olhos, almas e mãos nele introduzem, deles acolhendo tantas potencialidades "suaves, deliciosas, exultantes", três palavras que eu retiro agora da obra que me atraiu de uma estante, as Anotações críticas ao Novo Testamento síriaco, por Egidio Gutbirii, de 1706, impressas em Hamburgo. Mas vendo melhor o livro, e temos um belo exemplo da riqueza dos livros, da sua capacidade de serem espelhos do passado para o futuro, dou-me conta que a obra tem outro frontispício, começando portanto tanto no fim como no princípio do volume, no lado final, se o manusearmos da esquerda para a direita, surgindo o começo do Novo Testamento em síriaco e latim. Os livros são então boas novas, trazendo sabedoria que se acrescenta a nossa, e em certos casos, os mais frequentes, os livros sendo já escritos sobre outros livros, introduzem-nos numa cadeia de elos de sabedoria quase infinita, adentrando-nos no vasto campo bibliográfico mundial. E, assim, sobre a informação e ambiente passado que alguém num presente trabalhou, recriou, descobriu e passou ao futuro, nós agora, os leitores que de novo o retomamos, reatualizamo-lo de um modo ou outro mais luminoso neste presente e para um futuro bastante perene… E tal circulação de saber, energia e graça realiza-se seja pelo que sentimos, anotamos, mencionamos, ou mesmo aprofundaremos e escreveremos já posteriormente e independentemente, cada livro do passado sendo como uma semente lançada de uma planta madura e estática mas que se multiplica e vai renascer em outros espaçoa e tempos e de novo dar cores e perfumes, ideias e impulsões. Realcemos as palavras e estados de alma recolhidos há pouco nas três palavras, a suavidade, a elevação e a delícia. Possam os livros intensificar tais efeitos em nós e gerar frutos de vida eterna, ou seja, que iluminem mais as pessoas, as façam reintegrar-se harmoniosamente neste planeta, sistema solar e humanidade em história e evolução, de modo a que levemos o que se leu e amou em nós no corpo espiritual ou de glória, esse com o qual avançamos mais ou menos conscientes, aqui e aquém, rumo a melhores comunhões seja com os outros seja com Divindade, na Unidade amorosa, suave, deliciosa, elevante. Pedro Teixeira da Mota é escritor e mora em Lisboa Blog: pedroteixeiradamota.blogspot.com.br/ Facebook: facebook.com/pedro.teixeiradamota.5 Youtube: youtube.com/channel/UCTQwHXL9Ltw56J_hmNLLMeA #PedroTeixeiradaMota #Culturas #Culturadolivro #Livros #Aimportânciadoslivros #Bibliotecas #Culturaportuguesa #KATAWIXI #Katawixi

  • Mandalas da meia-noite

    As mandalas são essas belíssimas representações do centro do eu humano em processo de irradiação cósmica, expansão de formas, expressões em eclosão ao infinito do círculo. Há sete anos, em dias determinados, sempre à meia-noite, o fotógrafo Walter Antunes realiza uma mandala. A imagem é produzida com a câmera do celular e é imediatamente comunicada ao mundo pelo Instagram do fotógrafo. Muitas dessas mandalas surgem de um ponto secreto e escuro. Na maior parte das fotos mandálicas o fundo é preto. Elas fazem parte de um trabalho mais amplo incluindo outras formas, com título emprestado de uma música de Jimmi Hendrix: "Burning of the midnight lamp". A combustão da lâmpada solitária da canção é metaforizada pela luz cristalizada nas linhas e cores místicas e universais das mandalas. Embora produzida na solidão, como sugere a música, essa fotografia dirige-se instantaneamente ao mundo, simplesmente porque exprime a natureza da vida como arte e, consequentemente, beleza compartilhada. Essas formas circulares e artisticamente ramificadas estão relacionadas às antigas sabedorias orientais como representação da psique compreendida como totalidade cósmica. Com a realização desses desenhos de luz, o fotógrafo capta e realiza intuitivamente a vocação íntima de sua alma. Não por acaso as mandalas de Walter Antunes são expandidas do escuro para o claro no limiar da noite para o dia, como uma mensagem do oriente oculto ao ocidente materializado. Em uma análise do antiquíssimo texto chinês alquímico “O segredo da flor de ouro” - traduzido e interpretado para o ocidente por Richard Wilhelm – C.G. Jung explica: “De acordo com a concepção oriental, o símbolo mandálico não é apenas expressão, mas também atuação. Ele atua sobre seu próprio autor (…). É a participação de uma área sagrada interior, que é a origem e a meta da alma. É ela que contém a unidade de vida e consciência, anteriormente possuída, depois perdida, e de novo reencontrada”. Por trás de qualquer forma, qualquer luz, há o ponto extremo, centro do círculo, misterioso nada, a partir do qual tudo explode. E para cada formação pode haver uma explicação. Esse ponto surgiu da flor, aquele outro da fruta, alguns vieram de um teto. O ponto é "depois", tecnicamente. Ou seja, o ponto fotográfico referencial no sentido físico, foi uma coisa. E o ponto humano, localizado no artista, eclode na imagem, a qual é sua atualização, e esse ponto é "antes". Nós, olhando a imagem, somos "agora". É por isso que o desconhecido, o mistério no centro da mandala, é também conhecido, e se irradia. “O movimento circular também tem o significado moral da vivificação de todas as forças luminosas e obscuras da natureza humana, arrastando com elas todos os pares de opostos psicológicos, quaisquer que sejam”, explica C.G. Jung. A palavra mandala tem origem sânscrita e contém em seu significado primitivo os conceitos de “essência” e de “conter” ou “ter”, e é comumente traduzida por “círculo”, “circunferência”, “totalidade”, “plenitude”. Walter Antunes é fotógrafo há 20 anos, dedicando-se principalmente à fotografia artística. Ao longo de sua carreira realizou mais de 40 exposições individuais com temas relacionados tanto ao mundo das artes quanto a assuntos relacionados à ecologia, cultura popular e comportamento. www.instagram.com/walterantunes/?hl=pt-br www.walterantunes.com/ #WalterAntunes #Fotografia #Fotografiabrasileira #Mandalas #Mandalasdameianoite #LuamaSocio #KATAWIXI #Katawixifotografia #Katawixi

Katawixi é um lugar de crítica,
análise e divulgação de pensamentos, pontos de vista filosóficos, práticas
e produtos culturais, livres de vínculos institucionais, 
concebido por
Luama Socio e Walter Antunes.
 
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