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A potência das metamorfoses na prosa inventiva de Luiz Roberto Peel em “Zoodíaco Tocantino”



O livro de Luiz Roberto Peel Furtado Oliveira, “Zoodíaco Tocantino: a epopeia ensaística de um povo inventivo”, diz que há dez signos zoodiacais pelo ponto de vista tocantino. Começando do zero, e indo até o nove, esse zoodíaco completa dez figuras em analogia assimétrica, inventada, às doze partes da “zona circular da esfera celeste” em que se estrutura o círculo de animais do zoodíaco grego, base dos signos astrológicos mais comuns, esses herméticos e populares oráculos, a partir dos quais traça-se os horóscopos, as marcas da ligação entre homens e estrelas, sinais do destino.


A leitura dos signos zoodiacais geralmente pretende a compreensão do liame das distâncias e, no espaço que se faz entre elas, das formas infinitas dos desenhos das trajetórias, linhas e caminhos possíveis. “Dez cartografias formavam o caráter, a personalidade e o comportamento de todas as gentes tocantinas. E esse número, dez, poderia ser multiplicado sempre” (p.106).

Inspirando-se nesse método muito mágico, geométrico, poético e astrológico, Peel inventou nesse livro uma maneira de revelar o Tocantins, essa terra feita de distâncias, que para ser decifrada é preciso encontrar caminhos entre seus sinais. A natureza solar e ao mesmo tempo obscura dos signos da esfera tocantina faz com que eles apareçam às vezes nítidos e às vezes portadores de estranhas metamorfoses. Assim é que se discernem os exóticos signos das “baleias com chifres que aspergiam leite santo” e o dos “labigós-mutantes”, mas também signos de sólidos “pássaros” e nítidas “onças”.


Luiz Roberto Peel escreve de uma forma muito livre, intercalando em sua prosa, reflexões, pensamentos filosóficos e histórias inventadas ou lembradas, muitas vezes utilizando palavras ou expressões novas que parecem ter sido especialmente criadas para esse livro. Do ponto de vista da linguagem, essa liberdade aparece como potência de metamorfose entre os gêneros textuais tão díspares enunciados no título, a saber, “epopeia” e “ensaio”, quanto às variações do estilo da prosa ao longo das páginas. A ideia de metamorfose também pode ser compreendida no nível da simbiose entre imagem pictórica e palavra que se apresenta no plano da composição do texto repleto de desenhos elaborados pelo autor, os quais, para além da tradicional ideia de ilustração, funcionam como escrita.

Do ponto de vista da atmosfera do conteúdo global do livro, Peel capta com perfeição o signo geral do Tocantins, o qual se define justamente pela potencialidade das metamorfoses entre quaisquer signos particulares que se apresentem ao decifrador dessa terra, a qual se mostra, de ordinário, como velha e nova ao mesmo tempo, em que convergem ignorâncias e sabedorias, invenções e protocolos, dando a impressão de que aqui se sobrepõem temporalidades diversas numa mesma e única época. O livro propõe a cartografia desse lugar, em que a identidade de um povo está por ser construída a partir de elementos de diversidade representados pela conciliação de contrários ou até mesmo de paradoxos entre costumes ancestrais de valor à vida, à criatividade e à natureza, e a introdução dos valores da modernidade tecnológica predatória. Esse signo geral aparece representado pela potência das metamorfoses das dez figuras elencadas a saber: baleias, tamanduás, onças, pássaros, árvores, peixes, gatos, labigós-mutantes, labigós-tecelãs e arraias.


O narrador-oraculista começa lendo os signos pelo avesso, método que permite o deciframento de mistérios sem violá-los. A baleia, por exemplo, enorme como o próprio Tocantins – um signo à primeira vista de aparência nítida -, aparece desde a primeira vez enunciada como praticamente invisível exatamente por conta de sua magnitude, tal como a grandeza oculta da origem de todas as constelações. Nesse zoodíaco tocantino a baleia descreve uma estranha aparência de destino de leveza, quem sabe por surgir aqui, tão longe do mar: “As baleias são virtualmente diagramáticas, distanciando-se de qualquer ser ou de qualquer representação material de ser, sendo visíveis somente de certa distância. Quando o vidente se aproxima demais, elas desaparecem em seus voos” (p.20).


Para visualizarmos melhor essa baleia, Peel nos entrega um desenho, em meio às palavras, em que mostra o momento em que esse animal aquático, porém mamífero, ele mesmo na forma de uma gota, inicia uma trajetória em que, aspergindo seu leite, metamorfoseia mimeticamente a via láctea tradicional, nesse zoodíaco renovado pelas formas tocantinas.

Assim é possível vislumbrar como todos os começos se dão pela conciliação dos contrários, iniciando com o zero, a esfera, o círculo, o ventre, o caos, passando, sempre através do amor (início dos inícios ocultos), a todas as formas, às pessoas e suas criações. Então, em brusca metamorfose, a imagem transforma-se numa cena difusa mostrando um velho entre crianças, talvez o quadro de uma representação da potência das metamorfoses a partir das relações entre linguagens, sabedorias, mapas, geografias ou astrologias: “E, de gesto em gesto, desenhando quando não conseguia se fazer entender, o velho saruel se tornou o mestre também daquelas duas crianças, fundadoras de muita coisa da região tocantina”. Trata-se aqui da invenção de um começo-baleia, de muitas possibilidades e caminhos e nenhuma receita, sob uns modos de Anaxágoras de Clazômenas, um filósofo que, dizem, gostava da companhia das crianças e ajudou inclusive a criar suas festas de aniversário. Parece que Anaxágoras foi além das metamorfoses externas de Heráclito, propondo a troca dinâmica da transformação do subjetivo em objetivo e novamente em subjetivo, numa visão de mundo análoga à de um grande teatro cósmico.

O velho mestre do livro de Peel vai então pontuando aos alunos, frente aos signos e suas metamorfoses, alguns elementos-chaves para a elaboração da leitura do oráculo zoodiacal. Ele pretende apontar para as possibilidades infinitas da relação entre as formas, expor ideias de construção de ligações e apresentar visões sobre seus contextos, enfatizando a unicidade do ponto de vista de cada um, porque só assim é possível decifrar um oráculo e só assim é que um zoodíaco faz sentido: levando em consideração todos os seus sinais. Nesse ponto as crianças aprendem que todas as formas são espécies de linguagem e a metamorfose se faz entre as artes de seus códigos e sintaxes: “E as vírgulas são importantes para marcar a seriedade do fenômeno, sua pontualidade virgular – já que virgular é necessário para casos deste tipo (casos terrivelmente catatônicos). Se, por acaso, vivê-la, cante e dance, sendo mimeticamente musical; pois os tons sonoros impedirão que os tons visuais se percam no anonimato da descolorização imediata. A música, com seus passeios pelo caos, pela movimentação infinita de partículas sonoras, pode impedir o sumiço de cores (Saiba sempre disso! Não esqueça! Guarde em seu coração!)” (p. 34). Aqui está, bem ensinada, a potencialidade das metamorfoses como função de beleza, invenção e propriedade da linguagem, essa que traça o ritmo entre quietude e movimento, que expõe a homologia entre som e cor modulando o destino das emoções e dos comportamentos.

O segundo signo está ali, o signo da alegria, desenhado como uma bandeira com o coração ao centro, um tamanduá, ornado, parece, de sinais métricos tais como notas musicais ou teclados de piano, talvez sejam formigas em suas franjas… os caminhos de suas formas incluem todos os elementos primordiais e energéticos na compleição de seu mapa, que reflete histórias inventadas e histórias recordadas, tal como uma lenda indígena, sobre a origem de alimentos, de festas e do fogo. As marcas métricas que aparecem nesse tamanduá, tais como os sinais da música, e os corações como preenchimentos de centralidades geometricamente definidas, se repetem como elementos básicos da composição de todas as formas do zoodíaco tocantino.


O terceiro signo, da onça, da vaidade, da duplicidade, talvez dubiedade, aparece desenhado em várias posições. Numa delas, nota-se, a metamorfose se aproxima de um olho e de uma borboleta ao mesmo tempo (p. 41). Aqui destaca-se a história de uma onça rebelde, uma onça filosófica que, a despeito de ser abordada pelo narrador como uma personagem construída aos modos do perspectivismo indígena – o qual é, na verdade, mimetizado no livro como um todo -, “adorava foucault e deleuze (e guattari); era apaixonada por nietzsche e por espinosa; leibniz era uma outra paixão” (p.43). Ao leitor então, cabe fazer as associações das qualidades psíquicas enunciadas, com as formas da onça que, embora rebelde e filosófica, continua mesmo a ser onça.


O quarto signo, dos pássaros, combina o sentido sonoro da palavra “trino”, atributo natural do animal pássaro, com a evocação ao número três (que posiciona a ordem do signo entre os outros se considerarmos as baleias como signo zero), além de reger os atributos psíquicos dos nascidos sobre esse signo “do ar”, os quais se definem como portadores, tais como anjos, da ideia sagrada de trindade e, por conseguinte, também da natureza da palavra como elemento de função comunicativa, de mensageira entre os seres: “Ser pássaro tem muitos sentidos, dos quais o maior é aquele que aproxima cada ser que voa de cada palavra que também voa, já que os pássaros passam, mas as palavras que voam ficam” (p.51).


O quinto signo, das árvores, ou boés, é o signo da fraternidade e do abraço, a origem do próprio Tocantins. Nesse capítulo aparecem palavras novas, tais como “chalimis” e “boés”, designando seres ancestrais e também certa melancolia por conta da ininteligente extinção generalizada do mundo vegetal e suas florestas, o qual configura o próprio fundamento da existência dessa região: “as gentes de hoje em dia não percebem o outro, nem na natureza nem na cultura, o que as impossibilita de ouvirem as canções ou as danças de chalimis, de boés e de outros seres numinosos, já que a audição é um dos sentidos mágicos em sua excelência espiritual” (p.60).


O sexto signo, dos peixes, é o do amor e, portanto, da multiplicação. Traz associações antigas, que se relacionam a outros signos sagrados conhecidos através de contextos simbólicos diversos. Mas aqui se destaca a ligação desse signo com a noção de beleza contida nas ideias da matemática e da arte, ou seja, do mundo da exatidão combinado ao mundo da liberdade: “Peixes e pássaros, danças e músicas, gestos e sons, uniram-se assim pela e para a arte – por e para agenciamentos; por e para experimentações; e por e para devires” (p.69).

O sétimo signo, dos gatos ou “pingos” (pois os gatos possuem pingos específicos pintados em sua pelagem), é o da criatividade, que aqui aparece associada aos afetos e à magia, tão propícios à simbologia do número sete: “Os seres tocantinos viviam assim o bem e o belo, almejando, graças aos pingos criativos derramados sobre eles, a vontade da potência e a imanência inventiva – tão valorizadas naquelas terras, águas e céus” (p.76).

O oitavo signo é designado por um animal inventado, o “labigó-mutante”, o signo do professor, do narrador evocado pela Penélope oculta mencionada através do enigmático animal de mesmo tipo da mítica personagem homérica, a “labigó-tecelã”. A perspectiva do narrador-professor, que aqui discorre sobre a natureza de seu próprio signo de forma realista, é caracterizada por ele mesmo como algo emocionante e de grande responsabilidade, não obstante desvalorizado pela sociedade: “A labigó-mutante pode, então, rastejar, voar, nadar, correr, dançar e pensar; por isso tudo é que pode ensinar, alcançando aprendizagens variadas e múltiplas e profícuas e sabe se lá mais o quê”.

No nono signo é que aparece a “labigó-tecelã”, especificando o signo do narrador em sua essência mítica e própria: “as labigós-tecelãs eram nos primórdios tocantinos as professoras de todas as gentes, de todos os animais e de todos os númens; compondo, ao lado das labigós-mutantes, o quadro docente de todas as escolas: sendo que cabia às tecelãs a transdisciplinaridade; e, às mutantes, toda a transdução alagmática” (p.88). Esse é o capítulo de tom mais grave do livro, em que vida e morte aparecem como lições dos dois tipos de labigós mencionados, representando a transformação da existência espontânea e viva dos mitos, à passagem à letra morta que, não obstante, se quer viva através da atividade pedagógica.


O décimo signo, o das arraias, é o signo do juízo, mas de um juízo como função e não necessariamente realizado como tal. Nesse sentido, representam um juízo possível dentro do contexto da potencialidade das metamorfoses: “As arraias são como juízes, podendo decidir destinos; mas... só o fazem com a ajuda de labigós e de pingos. Tinham, naquelas épocas, um grande dom – viam o que não existia; viam baratas, onde não as havia; viam soluções, onde não as havia; viam por manchas, onde não havia nada. Tinham essa capacidade rara. Eram justas por isso? Ninguém o sabia ao certo (p. 98)!”


E é assim que esse zoodíaco de Peel propõe o desdobramento das combinações de seus signos em infinitas metamorfoses, de velhos em crianças, de prosa em poesia, de ensino em aprendizagem, de desenho em escrita, de invenção em filosofia, de arte em mapas de sabedoria, tudo isso compreendido na empreitada da descoberta e revelação dessa terra metamorfoseante, nomeada Tocantins.


Ilustração: desenho de Luiz Roberto Peel


“Zoodíaco Tocantino: a epopeia ensaística de um povo inventivo” de Luiz Roberto Peel Furtado de Oliveira foi publicado no ano de 2020 e pode ser acessado através do link:




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