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Perdoar nunca, esquecer jamais

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“Vivo entre os órfãos da polícia, os órfãos do crack

Os órfãos do álcool, os órfãos do cárcere

Não esqueci do futuro promissor destroçado

Que hoje aluga fuzil de precisão pra mega assalto

Sei que a mudança vem quando tivermos no caderno

O julgamento dos perpetuadores do nosso inferno”

(Eduardo Taddeo - Perdoar Nunca, Esquecer Jamais)


Eu ouvi de Sandra de Jesus, mãe de Luiz Fernando, um jovem negro de 20 anos morto por policiais da ROTA, que “o movimento social que mais cresce no Brasil é o movimento de familiares de vítimas da violência policial”. Mães que estão perdendo seus filhos. E isso ficou na minha mente…


Tenho participado de várias manifestações e, a cada relato que escuto, a cada cena que presencio, enxergo a luta de classes. Percebo o quanto o sistema tem promovido um verdadeiro genocídio de uma parte da juventude que vive nas periferias e favelas.


Em 29 de agosto em Santo André/SP realizou-se um ato em protesto ao assassinato de Felipe, jovem negro morto por um segurança de mercado que era policial militar. O caso de Felipe se soma a muitos outros. Ao longo desses anos participando dos movimentos de luta contra a violência policial, fica evidente que a PM tem sempre um alvo.


Falar sobre violência policial é falar sobre racismo, preconceito, desigualdade social e falta de oportunidades. É falar, sobretudo, de como o sistema capitalista explora e mata as pessoas como se nada valessem. É também sobre como o judiciário brasileiro se tornou um sistema apodrecido. Ao mesmo tempo, é reconhecer a força, a luta e a determinação dos movimentos sociais como instrumentos essenciais para transformar essa realidade.


Essa força vem, principalmente, das mães, dos familiares e das pessoas que se envolvem nesse movimento e que remam contra a maré. A luta contra a violência policial, sobretudo para quem já perdeu um filho, é ingrata. Afinal, a justiça conquistada nunca trará os filhos de volta — e essa é uma verdade dolorosa, como tantas vezes escuto nas falas das mães.


Por outro lado, também escuto delas que essa luta, da qual foram obrigadas a participar, nasce da necessidade de defender a dignidade de seus filhos. Do dia para a noite, elas se veem obrigadas a lutar por justiça, a enfrentar um sistema hostil, a impedir que mentiras sejam contadas sobre seus filhos e que narrativas falsas se construam em torno de suas mortes.


Elas travam essa batalha para que o mesmo não aconteça com outros jovens. E é nesse ponto que o movimento contra a violência policial nos ensina muito: sua luta se conecta à luta contra a exploração no trabalho, contra as opressões e contra as injustiças do nosso cotidiano.


Nesse movimento, deparamo-nos constantemente com situações graves de violência do Estado. Porque o Estado não apenas mata os filhos da classe trabalhadora — ele também os criminaliza. Além disso, adoece as famílias, principalmente as mães, muitas das quais morrem sem ver justiça.


É o que ocorreu, por exemplo, com as Mães de Acari, que há 35 anos perderam seus filhos em uma chacina e até hoje as famílias não obtiveram resposta. Outros episódios, como os Crimes de Maio de 2006, na Baixada Santista, permanecem impunes quase 20 anos depois.


O tempo do judiciário brasileiro é cruel. Os longos anos até se conseguir uma audiência (quando ela acontece) são desumanos. Apenas uma parcela mínima dos casos de vítimas da violência policial em São Paulo chegam a um juiz e se transformam em processo; a grande maioria são arquivados, como revela esse estudo (https://ponte.org/justica-de-sp-arquiva-mortes-pela-pm-sem-pericia-de-confrontos-ou-objecao-do-mp-mostra-estudo/) publicado pela Ponte Jornalismo.


Existe um ditado que aprendi ouvindo mães na luta que revela essa realidade: “a PM mata e o Ministério Público enterra”, “A polícia mata com as armas, e o Ministério Público, com a caneta”.


É por isso que a luta por justiça é, como elas dizem, ingrata. A justiça que temos hoje não serve à classe trabalhadora: foi feita para beneficiar os ricos, os poderosos, os brancos e quem tem acesso ao dinheiro. Uma justiça podre e perversa.


Nesta semana, por exemplo, participamos de um ato em frente ao Fórum Criminal da Barra Funda, o maior da América Latina. O protesto denunciava o cancelamento da oitava audiência do caso do massacre de nove jovens mortos pela PM em um baile funk em Paraisópolis.


Na mesma semana em que essa audiência foi cancelada, um dos policiais envolvidos — que lançou bombas e morteiros ilegais — saiu ileso e não responderá pelo crime. Para piorar, uma testemunha de defesa apresentou atestado médico alegando problemas neurológicos, aceito prontamente pelo juiz.


As mães e familiares, então, perguntaram: “E nós? Nós não estamos adoecidas mentalmente depois de nossos filhos terem sido mortos?”



Algumas semanas antes, também estivemos no mesmo Fórum Criminal, protestando contra o cancelamento de outra audiência: o júri popular dos assassinos de Guilherme Silva, jovem negro de 15 anos brutalmente morto por dois PMs em junho de 2020, na Vila Clara, zona sul de São Paulo. Eles trabalhavam como seguranças para uma empresa privada — semelhante ao caso de Felipe, citado no início.


Enquanto os policiais seguem impunes, as mães continuam defendendo justiça. E nós? O que vamos fazer para mudar essa realidade? Os movimentos sociais precisam apoiar essas lutas, estar lado a lado com esses familiares e aprender com eles.


Porque, embora ingrata, a luta por justiça é fundamental. Ela não traz os jovens de volta, mas preserva a memória. Ela expõe a verdadeira face de um sistema que mata em defesa de lucros e privilégios, decidindo quem deve viver e quem deve morrer.


Essa luta escancara a luta de classes e mostra a urgência de construir outro modelo de sociedade: uma nova justiça, novas oportunidades para a juventude, um país que realmente garanta os direitos inscritos na Constituição — tão distantes da nossa realidade.


Por isso, precisamos seguir lutando lado a lado, ombro a ombro, com essas mães. Cada jovem morto pela PM era uma vida, um sonho, alguém com sentimentos, desejos e afeto. Poderia ser um filho, irmão, sobrinho ou neto. Então, quando ouvir uma mãe de vítima da violência policial, escute com atenção. Solidarize-se com sua família, em vez de julgá-la.


Apoie sua luta, porque ela já não é mais apenas pelo seu filho: é por todos os filhos, por todos os jovens e por todas as mães e familiares que não podem — e não devem — passar pela mesma dor.


escrito em 29 de agosto de 2025


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texto e imagens: Ian Felippe

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