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  • Para uma vitória tranquila de Lula no segundo tempo

    Fotos: Walter Antunes Se nada de novo, para além dessas breves notas, surgir durante o tempo normal de partida, será uma vitória tranquila no segundo tempo dessa eleição. 1 Lula com quase 77 anos faz a sua parte de modo formidável. Andou o país de norte a sul com o peito e coração abertos. Construiu, dentro do que se propôs, uma frente ampla com representantes dos mais variados setores da sociedade brasileira. Com a rara inteligência e a fala de quem é um dos maiores oradores políticos da humanidade não foge do encontro, não foge do debate. Acompanhado quase sempre por pessoas com idade muito menor que a sua, Lula transmite energia e vitalidade. Ele parece o jovem desse campanha em contrapartida aos de aparência enferrujada e embolorada. Lula fez e continua fazendo a sua parte. 2 Para muitos foi uma grande surpresa verificar-se a existência em 2022 de uma enorme militância aguerrida em tempos sombrios de conforto e acomodação cibernética. Pessoas das mais diversas idades, estudantes, trabalhadores, sem teto. Essa militância segue dia e noite debatendo nas ruas, sabe conversar com o povo, tem alegria e simpatia e está por onde ainda existe militância: PT (sobretudo no nordeste e no norte) e os partidos de esquerda, com destaque para o PSOL e Unidade Popular nos mais variados lugares e estados, incluindo a capital paulista. 3 Toda a mídia antiga e nova, jornais, revistas, emissoras de rádio e tv, sites e canais de internet tratam a eleição como mais uma eleição, normalizam as fakenews, normalizam a mentira, colocam os candidatos dentro do mesmo paradigma como se fossem do mesmo tipo, como se tivessem a mesma história de defesa da democracia e o mesmo passado de realizações para o povo. Até o dia do segundo turno a tendência é uma enxurrada de mentiras tanto a maquiagem dos dados da situação econômica, como destaques para mentiras e fakenews contra a candidatura de Lula, em todas essas mídias que nunca tiveram nenhum apreço pela democracia ou para com o povo brasileiro. Não seria agora que assumiriam uma responsabilidade com a ética e verdade que não possuem, mostrando a real dimensão de quem é quem, mostrando as atrocidades e crimes do candidato do genocídio e o passado democrático e de transformações do país de Lula. 4 Abundam denúncias sobre a compra de votos e abuso do poder econômico. Foi a tônica da eleição para os legislativos e todo o primeiro turno. As denúncias são feitas e param na pilha da justiça, sem prazo para serem apuradas. Não serão apuradas as denúncias até o final da eleição e é ingênuo supor que o movimento de compra de votos não esteja em pleno funcionamento na reta final do segundo turno. 5 O TSE prometeu com grande alarde coibir o uso das mentiras e fakenews nessa eleição, seria "diferente de 2018". Nisso o TSE admitiu que as eleições de quatro anos atrás não foram realizadas com lisura. O que é uma declaração mais de culpa do que de incapacidade. Nesse ano não tem sido diferente, há uma estratégia de permissividade, um truque burlesco para parecer que existe combate aos criminosos: a mentira/fakenews é divulgada até a exaustão, quando a justiça eleitoral toma providências - isso quando resolve interferir diante de uma fakenews - o tempo de giro útil da própria fakenews já se esgotou, ela já foi substituída por outra, mantendo-se uma ciranda de hipocrisia quanto à fiscalização do funcionamento das redes de mentiras, difamação e calúnias. Não são feitas prisões, não são feitos bloqueios efetivos e permanentes das estruturas e pessoas das redes criminosas de fakenews, o beneficiado pelas mentiras não paga e nem é penalizado pelos crimes. 6 A coerção, o constrangimento, a pressão brutal através do uso de mentiras e do poder econômico sobre os funcionários dentro das empresas, algo que aconteceu em 2018 e que para muitos observadores passou despercebido, está em 2022 mais forte que em qualquer eleição anterior, maior até que tudo aquilo que se vivenciou em 1989. Além de grandes, médias e pequenas empresas, envolve fazendeiros, associações comerciais e industriais de diversos estados e municípios, além dos representantes do agronegócio. Gente que prefere ter menos lucro com a situação de destruição do poder de consumo do povo brasileiro do que ver Lula em Brasília governando novamente. Não custa lembrar que nunca antes nem depois do governo de Lula as pessoas tiveram tanto acesso a crédito, tanta facilidade e condições para consumir. É mesmo uma questão de ódio por princípio, se opor ao Lula, já que nunca as empresas lucraram tanto com o acesso ao consumo como no governo do PT. A justiça novamente se omite, atuando quando muito com aplicação de multas que muitas vezes apenas são noticiadas e não têm seu cumprimento efetivo. A forma de combate efetiva é a prisão imediata de proprietários, gerentes, chefes de departamento, qualquer pessoa que use seu poder econômico ou cargo para oprimir o trabalhador com ameaças de desemprego se estes trabalhadores não elegerem o candidato do patrão. As mesmas prisões dos criminosos das fakenews que não acontecem, continuam não sendo feitas nesses casos de coerção de patrões contra empregados, o mesmo se dá em relação ao terrorismo empresarial das notas e comunicados de empresas aos seus fornecedores sobre paralisação das atividades em caso de vitória de Lula. Terrorismo dos patrões e empresas contra o povo. Surpreende a pouca aparição e força efetiva, a falta de protagonismo e liderança dos sindicatos dos trabalhadores em toda a eleição de uma forma geral, algo que se arrasta desde 2016. 7 No primeiro turno das eleições de 2022 aconteceu o segundo maior locaute de transporte público da história do país. O maior locaute está por acontecer no segundo turno. Empresas grandes com suas frotas de ônibus, autônomos e pequenas empresas que fazem transporte em vans em regiões carentes de transporte público sobretudo no norte, nordeste e nas periferias das grandes cidades do sul e do sudeste, boicotam o voto daqueles que dependem de condução pública para se locomover até o local da votação e exercer o direito do voto, um dos pucos direitos que ainda restam ao cidadão. O perfil predominante desse eleitor em todas as pesquisas indica voto em Lula. O locaute é mais um crime impune cometido contra a democracia. 8 No universo religioso o aprofundamento do voto de cabresto se dá a cada eleição, 2022 segue a tendência. Seja através de fakenews ou pregações com citações deturpadas de textos bíblicos, a tendência se confirma a cada nova votação. O cabresto não se dá apenas nas grandes organizações que se auto-denominam como igrejas, aquelas já altamente conhecidas da sociedade brasileira que possuem líderes cobertos de denúncias sobre comprovados e reiterados crimes, há também uma pulverização por todo o país de pequenos espaços de reunião, cada um com seu auto-proclamado "líder espiritual" que em via de regra segue e imita os clássicos exemplos de sucesso dos “empreendedores das igrejas" mais famosas. A sociedade brasileira assiste a esse avanço perigoso completamente calada desde no mínimo os anos 1960. Assiste a uma imensa multidão que por falta de inserção ou acolhimento na sociedade se entrega ao cabresto de locais e pessoas inescrupulosas que acabam se valendo da gente crédula por atender, sob o pretexto religioso, as necessidades de socialização desse povo quase sempre humilde, o que não deixa de ser um clube onde se pode cantar, dançar, participar, ser ouvido, se fazer sentir representado, mesmo que, como em todo clube, haja o pagamento das mensalidades, disfarçadas sob o nome de dízimo. Muitos políticos e partidos ao longo das últimas décadas, ao contrário do diálogo direto com o povo através de políticas públicas de participação, optaram por negociar com os grandes operadores dessas organizações em busca do voto em atacado em tempo de eleição. Muitos desses frequentadores dos “espaços de fé” acreditam no que lhes é dito e se regozijam em pensar que são os privilegiados escolhidos para participarem do apocalipse. Para que esse apocalipse possa acontecer, não medem esforços em contribuir para a destruição e o caos, isso inclui, claro, o voto de cada um deles. Esse território “religioso” está mais uma vez completamente perdido para esta votação, justo esta eleição que se revela tão absurdamente definidora da sobrevivência do Brasil enquanto projeto de nação em contraponto ao serviço feito ao longo dos últimos seis anos que se apressa em transformar definitivamente o país num mero fragmento de colônia. Esse território dos “líderes espirituais”, que se não for visitado com extrema profundidade e seriedade por toda a sociedade brasileira, num futuro breve acabará por promover a destruição do país que ainda se tenta evitar neste momento de 2022. 9 A pesquisa não é a pandemia, a pandemia não é a pesquisa. O genocídio, sem outra palavra, o genocídio imposto ao povo brasileiro pelo governo, impactou pesquisas. Sabemos que pesquisas não erram. Algumas podem ser manipuladas, quando muito, se distantes de um momento de votação são lançadas como balão de ensaio, mas cada vez menos há manipulação de dados quando se avizinha o resultado das urnas. Então se a eleição fosse em 2021 Lula ou qualquer outro derrotaria o ocupante do cargo de Brasília. Mas a normalização da vida, seja por instinto de sobrevivência e desespero por se seguir em frente, seja por um grande mecanismo de propaganda da máquina "secreta e internacional dominadora de mentes”, a normalização da pandemia normalizou o genocídio. Depois a normalização fez esquecer do genocídio. A normalização apagou o sofrimento, a dor, a indignação, a revolta, a memória. Então a pesquisa, que não é a da pandemia, em nenhum momento desde o início da campanha eleitoral garantiu vitória de Lula no primeiro turno. As pesquisas, que não são mesmo da pandemia, vão trazer até o dia do segundo turno uma diferença cada vez menor entre as candidaturas chanceladas pelo povo brasileiro e as suas instituições, vão provavelmente apresentar empate técnico na véspera da votação. Esse é o grande risco que um povo corre ao permitir que as coisas sejam normalizadas, estancadas, esquecidas: a dor, a revolta, a consciência. Então os milhões de mortos e sequelados, normalizados e esquecidos, não são argumentos que tocam nem o eleitor, nem a pesquisa, que não é mais a pesquisa da pandemia. Estes são os mortos. Não são os 30 milhões de brasileiros que estão passando fome, estes sempre foram e sempre serão invisíveis ao eleitor e às pesquisas. 10 O Brasil “um país para todos” de Lula não deu certo, não por falta de vontade e convicção de Lula no seu ideal de projeto, mas pelo encastelamento de cada um em sua posição de um jogo primitivo de exploração. Os exploradores das riquezas da terra e do trabalho alheio não se deram por contentes com a estabilidade do país e o aumento da sua própria riqueza. Sempre é bom lembrar que os que mais se beneficiaram com o governo do PT foram os que acumulam riquezas neste país. O desvalido, o trabalhador, aquele que nunca teve nada, inegavelmente teve inumeráveis formas de acesso a uma vida melhor em todos os aspectos, desde a entrada na universidade, passando pela saúde, alimentação, grande melhora na sua qualidade de vida, mas quem mais lucrou e guardou esse lucro com a enorme roda aquecida do consumo, foi aquele que nunca abandona sua posição de senhor das terras do Brasil, aquele que sempre vê uma árvore como algo a ser derrubado para seu lucro. Que nada é suficiente para os mandatários, isso é uma lição sabida, o surpreendente na história foi o passivo recolhimento do explorado para o lugar e papel a ele sempre destinado “é a parte que te cabe neste latfúndio”. Como se tivesse vivido um tempo bom não por ele conquistado, mas proporcionado por um estado que então podia retirar com direito tudo o que lhe pareceu brevemente dado. A não mobilização deste povo em defesa de uma legítima presidenta Dilma contra o golpe brutal e vergonhoso é a prova inconteste desse recolhimento da população. Não foi uma falta de sorte o Brasil viver durante a pandemia sob um anunciado genocida no poder, foi a escolha deste país. E é essa ideia de “Brasil feliz de novo”, “um país para todos” a principal promessa de Lula neste trágico momento do país. Lula fala ao povo sobre a volta de um tempo e um Brasil que esse mesmo povo não lutou para que continuasse existindo, presente dado, presente retirado. 11 A militância de internet ou o ser que habita a internet, parece cada vez mais distante da realidade do país e do povo. Às vezes parece mesmo apenas habitar as redes sociais. Produzindo e replicando todo tipo de opinião sobre qualquer assunto, com veemência e autoridade caricatural, salta de um tema a outro com propriedade de especialista, produz um amontoado gigantesco de memes, domina a cena da própria bolha e no momento seguinte descarta o tema sem nenhum pudor, sem aprofundamento de qualquer debate, sem responsabilidade sobre o mundo. Desde 2015, pelo menos, produziram as mais variadas hashtags e memes como "não vai ter golpe", "fica Dilma", “fora vice-vampiro”, “elenão”, "ninguém larga a mão de ninguém", todas inócuas em dialogar com a realidade do país e todas fracassadas, além da quantidade infindável de clipezinhos e lives de gente falando ao próprio umbigo. No final ninguém larga a mão de ninguém apenas na rede social, mesmo que a pessoa morra, se mantém a mesma como seguidora para se ter número. O que importa é a quantidade de likes e o prestígio junto a sabe-se lá o que. A possibilidade de falar para fora da bolha cada vez mais parece não ser uma incapacidade momentânea, mas uma total impossibilidade física. Cada vez mais essa militância cibernética ou seres que habitam a internet, parece não conhecer mesmo ninguém do povo, não saber a sua linguagem, não saber fazer o "link", a ponte. Parecem estar vivendo dentro de um videogame ou num laboratório que realiza testes com ratinhos. Costumam quase sempre atribuir os insucessos à conjuntura internacional. Pena que segundo a lógica deles, apenas o que é ruim tem efeito no Brasil. Nunca os avanços positivos da tal conjuntura mundial chegam ao país. Ainda assim se mantêm firmes no seu papel de tribunal que julga e executa a sentença, como tão bem explicou Tom Zé. Os que usavam a hashtag "com supremo, com tudo", agora tratam em suas postagens, por apelidos carinhosos, membros daquela corte, já por eles transformados em super-heróis. Julgaram e sentenciaram Ciro Gomes, e por consequência seus eleitores, com um rigor nunca utilizado em relação a notórios golpistas da presidenta Dilma, golpistas que agora integram a frente ampla pró-Lula. Executaram toda e qualquer candidatura de esquerda que ousou não estar com Lula no primeiro turno, quando todos sabiam ser impossível a definição já em primeiro turno, pela polarização contida, estimulada, na própria proposta de se eleger Lula no primeiro turno. Essa militância cibernética, entre outras coisas que beiram o surreal, acreditou que a pandemia tinha resolvido para o país a questão de qual seria o eleito em 2022, apostando em altíssimas taxas de rejeição que simplesmente se dissolveram. Nota-se também que boa parte da chamada mídia independente tem cada vez mais enveredado por esse caminho do jogo-debate inócuo da turma cibernética. Uma espécie nova de gente a ser estudada que quase nunca favorece a democracia e o avanço de nada do país, mas que tem e exerce potencial destruidor de pessoas e vidas. Tem-se a impressão que tudo parece apenas um jogo para essas pessoas, um preenchimento de formulário cibernético de cada rede social. Impressão de que, independente do resultado do dia 30, ficarão pelo resto da vida produzindo e replicando memes como “agora é resiliência e aguentar mais quatro anos”. O Ódio Há um ódio permanente na população brasileira, sempre esteve disfarçado pelo sorriso e uma cordialidade superficial, mas esse ódio estava ali desde 1500, pulsante e latente, esperando a hora para emergir. As novas tecnologias de comunicação, a internet, o pseudo-empoderamento podem ter contribuído para trazer à tona todo esse ódio, mas não o criaram. O punitivismo cego, a intolerância, o egoísmo, a vontade permanente de ver alguém no banco dos réus, o desejo pelo açoite e pela chibata cobrindo a pele ensanguentada do outro, do vizinho ou de quem quer que seja, sempre esteve presente e impossível de não ser constatada por um andarilho atento desta terra de berço esplêndido. Se isso tem origem numa colonização de exploração que nunca foi vista para se criar um verdadeiro lar pelos brasileiros, mas apenas um lugar para se dar bem a qualquer custo e depois cair fora para alguma metrópole de outro continente, se isso nasceu com a sequência de séculos de grandes injustiças e concentração de renda, se tudo isso aparece por conta de uma história mal contada que traz um herdeiro do trono português como libertador, um general do imperador como inaugurador da República, aristocratas da velha república "derrubando a corrupção" da velha república em 1930 ou se isso nasceu de uma Lei Áurea que não liberta, pouco importa nesse momento. Agora pouco importa de onde veio todo esse ódio. Quando Lula foi eleito em 2002, fiquei com a impressão de que um dia o povo no Brasil iria querer vê-lo na cadeia, não importa o pretexto, mas pela ousadia de desafiar o rito perpétuo estabelecido nessa colônia do explorador e explorado. Em 2010 quando Lula tinha 90% de aprovação popular, tive de novo a mesma sensação e pressentimento: ele teria que pagar por mexer tanto nas coisas e permitir ao explorado sonhar, teria que pagar não apenas pelo ódio do explorador, mas também pelo ódio raivoso e inconsciente do explorado que não se permite ver noutro espaço que não o do miserável a quem nada cabe, além da chibata e da exploração. Infelizmente minha percepção estava correta. Esse eleitorado cheio de ódio é quem vai decidir através da rejeição, a eleição e o destino do Brasil. Esse eleitorado cheio de ódio armazenado e alimentado ao longo dos 522 anos de Brasil parece insensível e intocável por qualquer argumento, fato, prova. Sem liberdade. Sem igualdade. Sem fraternidade. Nenhum argumento ou prova toca seu coração ou a sua mente: nem racional, nem científico, nem verdadeiramente religioso ou moral, nem instintivo de sobrevivência animal, muito menos espiritual. Não! Amor não é uma palavra que ele conheça. Amor no Brasil só o Amor do Índio.

  • A Arte Inominável de Seu Maloka

    Eu vivo na produção musical há mais de quatro décadas e no audiovisual há mais de duas. Trabalhei num dos mais históricos estúdios musicais de São Paulo: o Estúdio Vice-Versa, que tinha sua sede num antigo casarão, estilo francês, na rua Alves Guimarães, entre as avenidas Rebouças e Teodoro Sampaio, em Pinheiros (demolido recentemente). Por ali, vi entrar e sair uma infinidade de compositores, instrumentistas, maestros, gente famosa e muitos deles começando, gravando seu primeiro disco. Ainda estávamos na era do disco de vinil e o Vice-Versa finalizava o projeto do artista com uma matriz do disco, em vinil. Uma maravilha para a época. Ninguém pirateava. Hoje... Foi ali que me apaixonei pela Feira de Antiguidades da Praça Benedito Calixto, descendo todo sábado pela rua Teodoro Sampaio, perto da avenida Henrique Schaumann. Deixei muitos salários ali. Além de garimpar discos de vinil e antiguidades do cinema, ficava maluco com o grupo de chorinho e samba que tocava na praça, todos os sábados. Tinha um senhor de cabelos já bem brancos, tocando violão tenor, que era um primor. Outro que me chamava a atenção era um rapaz espigado, sempre com óculos na cabeça e um sorriso estampado no rosto. Tocava tamborim e surdo com uma alegria contagiante. Parecia que era a sua vida. Um dia tomei coragem e me apresentei. Aí que fiquei sabendo que ele era o Magrão, grande jogador de basquete do Esporte Clube Sírio e professor de inúmeras crianças da periferia, que ele ajudou a tirar das ruas. Um trabalho magnífico, no Beco do Aprendiz, na Vila Madalena, que acabou ganhando publicação do jornalista e escritor Gilberto Dimenstein, que o nominou de “Herói Invisível”. Já tinha lido sobre ele. Ronaldo Belotti era o seu nome. No final da década de 1990, voltei para a minha região, a Noroeste do Estado de São Paulo, mais precisamente São José do Rio Preto. Abri uma produtora e em quase uma década produzi mais de 150 discos (já na era do CD), de inúmeros compositores de toda região. Na virada do novo milênio, chegou a pirataria desenfreada e, com ela, a morte das grandes gravadoras. A moda agora era ser “independente”, justamente o inverso da era do vinil. O audiovisual chegou também pra valer na metade do ano 2000, mudando, praticamente, todo panorama da música no mundo. O disco passou a ser apenas o cartão de visita do artista e muitos começaram a produzir o seu próprio trabalho. Para diversificar, comecei a garimpar artistas de outras regiões, até chegar na capital e ter uma baita surpresa, mais de 15 anos depois. Numa manhã de sábado, eu e a minha mulher fomos para a feira da Benedito Calixto e, passando por um bar que dava de frente para a praça, ouvi um som diferente. Era apenas um surdo e uma voz. Pensei: será que o cara da harmonia foi ao banheiro? Ou não veio? Mas não. Não tinha harmonia. Era só o surdo e a voz mesmo. Uma performance de cair o queixo. Parece que eu nunca tinha ouvido aquelas músicas antes. E eram músicas ultraconhecidas de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, entre outros. Ficamos malucos. Voltamos para Rio Preto com aquilo na cabeça. Mês seguinte, estávamos de volta Sampa e também a feira da Praça. Procuramos no mesmo bar, mas lá ele não tocava mais. Putz. Fiquei frustrado de não poder encontrar mais aquela figura. Porque não falei com ele da primeira vez? Então resolvemos atravessar a rua e entrar numa galeria, que descia uns 3 andares num labirinto de lojinhas. Lá embaixo, avistamos um restaurante cheio de gente, servindo uma suculenta feijoada. Entramos e, para a nossa felicidade, lá estava o “cara”, batendo forte no surdo, arrepiando Haiti, de Caetano Veloso. Um tapa na cara. Pensei: "dessa vez ele não me escapa". No intervalo, fui lá. Ele logo me reconheceu. “Você não é aquele que produzia música?” Respondi que sim e que agora estava também produzindo audiovisual, principalmente documentários e shows musicais. Desse minuto em diante, cada 3 palavras minhas eu falava: "vou te produzir, vou te produzir". Em conversa posterior, ele me confessou: “de prima, não dei pelota. Achei que era mais um tirando uma onda com suas promessas. Falei até com a minha mulher Guta, Não vai virar”. Mas virou. Alguns meses depois, Magrão chegava a Rio Preto e começamos a produzir o seu filme. Ele estava radiante. E ainda deu um show numa casa noturna da cidade. Daí pra frente, não desgrudamos mais. Dvd na mão, Magrão e eu começamos a divulgar o seu trabalho. Em seguida, fomos convidados para abrir o Festival “Cantos da Cuesta”, de Botucatu, interior de São Paulo. Outro show espetacular, agora com o auxílio luxuoso do internacional músico percussionista Marco Bosco, radicado no Japão há 25 anos. E tinha mais! Meses depois, Magrão, agora com o nome artístico de “Seu Maloka”, apresentava-se no histórico programa Senhor Brasil, de Rolando Boldrin, na TV Cultura e torna-se protagonista no Festival de Música de São José do Rio Preto, fazendo a performance especial da noite, além de ser membro do corpo de jurados. Mas, infelizmente, o gigante tombou no meio do caminho. Ronaldo Belotti morreu na sua cidade natal, São Paulo, em 2020, vítima da Covid 19, aos 61 anos de idade. Um personagem inesquecível, um ser humano incrível, um herói invisível, que estava recebendo apenas um pouco de tudo que ele já tinha dado a tantas pessoas com o seu esporte e sua arte inominável, indescritível. Um jogador cuja a maior jogada era fazer o bem. Fernando Marques Músico, jornalista, historiador e documentarista. Fundou a produtora Tempo Livre Discos, em 1991, em São José do Rio Preto-SP, que produziu mais de 150 discos de toda região. Proprietário da produtora de documentários Rio Preto em Foco Filmes e titular da coluna Rio Preto em Foco, no Diário da Região, desde 2019. É diretor do Arquivo Público Municipal de São José do Rio Preto.

  • Leopoldina, José Bonifácio e as independências

    por Plínio Soares Pra mim, a coisa mais forte em fazer esse espetáculo é a contemporaneidade! Um das minhas falas, que faço o José Bonifácio, quando ele é questionado por publicar um jornal chamado O Tamoio: "Poderia haver referência maior à selvageria que tomou conta desse país? Perto dos homens que atuam na nossa política, os Tamoios são verdadeiros anjos de candura..." Isso 200 anos atrás! Parece que eu tô falando nos dias de hoje! Isso sem falar na Leopoldina. Que personagem! Uma mulher da sua dimensão, calada pelo limitado macho D.Pedro I, uma princesa que chegou ao Brasil aos 19 anos e morreu aos 29, com 8 gestações. Percebe-se como evoluímos muito pouco? Ela e Bonifácio sonharam um país, e deram suas vidas por isso! Poderíamos ter sido um outro país hoje, mas a elite rica não permitiu, e continuamos assim, reféns da "força da grana que destroi coisas belas!!!!" Leopoldina, Independência e Morte O espetáculo “Leopoldina, Independência e Morte” recria três momentos da vida da arquiduquesa austríaca que viveu no Brasil no século XIX, entre 1817 e 1826: recém-chegada da Áustria, ela relata a uma interlocutora estrangeira suas primeiras impressões sobre o Brasil; num segundo momento, Leopoldina, agora imperatriz, e José Bonifácio, seu principal aliado, analisam o complexo processo de independência após um acerto de contas; e, por fim, num delírio que consumiu seus últimos dias, ela relaciona sua vida, sua época e os projetos em disputa naquele momento com os dias de hoje. Espetáculo Teatral “Leopoldina, Independência e Morte” Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo Período: 07 de setembro a 16 de outubro Horário: 07/09, 17h e 08/09, 19h. De 09/09 a 16/10 – Sextas-feiras, 19h | Sábados e domingos, 17h

  • Trânsitos e Atemporalidade

    Sobreposições de imagens, produzindo novas imagens que abrem ao observador a possibilidade de trânsito, como se aquilo que se vê no dia a dia não fosse a realidade total das coisas, quase uma revelação, em que o observador se integra à obra com a possibilidade de, imerso nela, ampliar a própria visão das coisas e ter uma ação transformadora sobre si mesmo, é o que desvendamos no trabalho de Danna Durãez. Um mundo de fantasmas, um mundo onírico de reverberação entre tempo e espaço. A alegoria do fantasmagórico, do mundo feminino ressoando no aqui e agora. Trabalho que conduz o observador a uma atmosfera de sonho, para um momento onde é possível reinventar uma nova forma de estar presente no mundo. Um vestido de infância encontrado numa caixa de papelão produz uma conexão imediata com o objeto. O objeto tem e traz histórias: a descoberta que foi feita, “costurado pela mãe quando a artista tinha sete meses de idade, produz a eureka”. O vestido, como um objeto de afeto, memórias, evocando a presença do fantasmagórico entre corpo-câmera. O preto e branco da fotografia e o analógico acabam – ao contrário do que inicialmente poderia se supor – trazendo camadas de profundidade, reflexos e reflexões e permanências num mundo cada vez mais condicionado a uma constante explosão de cores e movimentos nos instantâneos de micro-vídeos produzidos e apreciados pela maioria das pessoas com a facilitação dos mecanismos tecnológicos. A aparente quase ausência de figuras humanas não traz desolação, muito mais que isso, acaba por produzir introspecção e conforto, como se dissolvesse o ego e investisse no eu com suas reais verdades e possibilidades. O recurso da dupla exposição ou sobreposições acaba por velar o sujeito, dando ênfase ao percurso do olhar em várias camadas do corpo ausente, mas presente, e também das conexões simbólicas como o vestido, as nuvens, a natureza. Um contraponto entre o ambiente urbano externo - as ruas, repletas de fantasmas e espectros, aparente insegurança e desconforto, quase um mundo acidental e infeliz - e o interior, o lar como mundo real, onde podem se tecer as verdades e belezas da existência. Dois mundos que habitam ao mesmo tempo o planeta. Vivências, experiências, memórias. Uma “busca do tempo perdido” dentro de “a poética do espaço”. Permitir “olhar e não olhar”. Identificar algo que está dentro das camadas, das sobreposições, ligando lugares, sensações, conexões simbólicas, afetos, sentimentos, jogos de ilusão. A atmosfera de sonho produz um chamado e uma esperança. A arte da fotografia surge como possibilidade transformadora de mentes e corações neste momento de aparente civilização abduzida pelo próprio reflexo instantâneo de “stories” efêmeros. Essa fotografia, mesmo quando trata do eu, está falando ao outro e do outro interrogando sobre a possibilidade de dialogar com o outro. Trata-se de uma reflexão do olhar e ser olhado, de tocar e ser tocado. Além do diálogo visual, pictórico, há também trocas de experiências, vivências e até a problematização do idêntico e do diferente, a questão de compreender a experiência quanto à transformação ou a atemporalidade. Danna Durãez é brasileira, artista da fotografia. site: dannaduraez

  • O Homem Hidrológico

    É evidente que a situação ambiental dos recursos hídricos não anda boa. Toda base do desenvolvimento humano causa grandes mudanças hidrológicas, comprometendo a segurança alimentar e a prosperidade econômica. A aceleração do declínio dos recursos hídricos nos municípios é no mínimo preocupante. Diante do ganho econômico de curto prazo e a saúde dos sistemas hídricos normalmente escolhe-se o primeiro. Assim aproximamos rapidamente de uma condição crítica. Nos territórios, nas propriedades e na nossa casa. A grande ameaça, a verdadeira ameaça é a postura do homem. O modo elementar de gestão da natureza tornou-se hegemônico e vai levando a sociedade para um colapso ambiental. Em se tratando de água parece que o homem é incapaz de não destruir. Sem olhar, sem perceber, sem raciocinar, o homem relaciona-se friamente com a água. Em qualquer lugar ou empresa o problema com a água parece um exercício de futurologia; principalmente nas propriedades agrícolas. Com o peso dessa realidade, é preciso admitir que necessitamos de um “novo homem”: o "homem hidrológico". O homem hidrológico é aquele que vive intensamente suas relações com a água. Busca aprimoramento constante de suas ações em relação às formas de água presentes no seu cotidiano. O homem ciente do seu papel no ciclo hidrológico. O que percebe os efeitos de suas decisões principalmente quando se trata de recursos hídricos de superfície. No contexto do desenvolvimento o homem hidrológico se faz cada vez mais necessário. Instrumento de requalificação da ocupação e uso do espaço. Na adequação de modelos de gestão frente aos fenômenos hidrológicos presentes com as mudanças climáticas. A figura acima, tenta mostrar a representação esquemática do “homem hidrológico”. Afonso Peche Filho Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas www.iac.sp.gov.br

  • Fátima Barros e todas vítimas pobres da covid: presentes!

    Dedicamos este espaço para homenagear as pessoas falecidas em decorrência do coronavírus. Pelos motivos que apresentaremos a seguir, estas linhas são para reverenciar especialmente as pessoas negras e pobres das periferias dos centros urbanos, bem como quilombolas e indígenas, pessoas que nos deixaram por não terem acesso à vacinação ou a um tratamento digno de saúde. Este foi o caso de Maria de Fátima Barros, líder quilombola sobre a qual falaremos logo mais. Recentemente, houve a flexibilização do uso de máscaras, o que significou, para muitos, o fim da pandemia e o esquecimento de alguns dados: no país, contabilizamos mais de 650 mil pessoas mortas, mais de 30 milhões infectadas e, apesar disso, a vacinação caminha ainda em passos lentos. Entre os mais afetados, estão pessoas não-brancas, das periferias e de territórios tradicionais, sobretudo as mulheres negras, como aponta o relatório final da cpi da covid. Simbólico nesse sentido foi a primeira vítima da pandemia: Rosana Aparecida Urbano, mulher negra de 57 anos, empregada doméstica que foi infectada pelos patrões após viagem deles à Europa. A condição de trabalho de dona Rosana, sem acesso ao trabalho home office, é a mesma de milhares de pessoas negras e pobres deste país, que são empurradas aos transportes públicos e, consequentemente, expostas à contaminação. Apesar dos números serem alarmantes, eles ainda são imprecisos, pois o quesito “cor/raça” não foi levado em conta em todos os estados, ainda que tenha sido o Sistema Único de Saúde (SUS) que lidou com a crise de saúde na linha de frente. Nos territórios indígenas foi preciso um amplo empenho das lideranças, movimentos sociais e apoiadores/as para que a vacinação acontecesse. Os povos sofrem há tempos com invasões ilegais de garimpeiros, latifundiários e grileiros, que espalharam o vírus em territórios de norte a sul do país. Isso sem mencionar a escalada de violência que nunca cessou, pelo contrário senão cresceu, impulsionada por setores ideológicos do atual governo federal. Nas comunidades remanescentes de quilombos, a situação não foi diferente: privação, doença, ameaças física e biológica. Por isso, apesar de ter sido usada com fins eleitorais aqui em São Paulo, não deixou de ser simbólica a escolha das primeiras pessoas a serem vacinadas: Mônica Calazans, mulher negra, funcionária pública da área da saúde, e Davi Seremramiwe Xavante, pequeno indígena de São Paulo. Maria de Fátima Barros não teve essa oportunidade, não pôde tomar a vacina. Maria de Fátima Barros, é preciso sempre repetir esse nome, faleceu em abril de 2021, vítima não apenas da doença, mas, sobretudo, da necropolítica levada a cabo pelo governo federal. Educadora, líder quilombola da Ilha de São Vicente (Araguatins – Tocantins), militante da Articulação Nacional de Quilombos (ANQ), Fátima Barros, como era conhecida, dedicou sua trajetória em defesa dos povos tradicionais, dos negros, dos indígenas e dos periféricos. Sua morte prematura e inaceitável não pode cair no esquecimento, pois com sua partida perdemos todos. À Maria de Fátima Barros dedicamos essas linhas e reiteramos seu nome para que sua voz, sua força e sua sede de reparação histórica se presentifiquem e nos fortaleçam, pois a luta está longe do fim. Fátima Barros e todas vítimas pobres da covid: presentes! Alexsandro de Souza e Silva é professor na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) Unidade Passos, e membro do Grupo Cotas municipais, da cidade de Passos/MG. fotos Walter Antunes

  • Uma voz de mulher negra levanta-se contra a escravidão

    Que maravilha deparar-se com um texto abolicionista anti-escravista e feminista publicado em 1887 - portanto no ano anterior à abolição da escravidão no Brasil - por uma mulher negra, Maria Firmina dos Reis, contendo uma personagem-narradora mulher, branca, contando a história de uma mulher negra escravizada, Joana, injustiçada, livre de direito e de fato, tachada de doida, a qual, por fim e no núcleo, narra sua própria história, a história de A ESCRAVA. Nesse conto Maria Firmina dos Reis nos mostra a imagem da exaustão no centro da composição de uma alegoria escravagista dialogando com o martírio crístico e com o esgotamento da "política" escravocrata brasileira. Trata-se aqui também de um pouco mais: do signo da chegada ao objetivo da abolição ou superação da injustiça escravagista em tons conducentes aos sentidos alternantes de sucesso, sofrimento e fracasso aparecendo na evolução narrativa da figura de Joana. Fica a mensagem da alegoria: essa mulher, esse Cristo, essa lei, essa mãe, essa terra, não morrem, mesmo parecendo que morrem. A alegoria é o símbolo do percurso da narrativa trágica. A escritora brasileira Maria Firmina dos Reis realiza uma obra singular de lugar intelectual e político, performatizando o papel de cidadã negra do Império engajada na ideia de legalismo de Estado e, portanto, de progresso, circundado pelos símbolos do catolicismo amalgamado - porém plenamente compreendidos pela professora maranhense - como pilares dos lemas da revolução burguesa ou francesa, de 100 anos antes na Europa. Bem no início do conto, a aproximação entre o progresso econômico e a ideia de fraternidade, um dos lemas da Revolução Francesa, é enunciada nos moldes que se perpetuam até hoje dentre os argumentos sobre as desvantagens da escravidão: "Dela a decadência do comércio; porque o comércio, e a lavoura caminham de mãos dadas, e o escravo não pode fazer florescer a lavoura; porque o seu trabalho é forçado. Ele não tem futuro; o seu trabalho não é indenizado; ainda dela nos vem a desonra pública, a vergonha; porque de fronte altiva e desassombrada não podemos encarar as nações livres". Esse é um tipo de texto em que é necessário notar a excepcionalidade da autoria da mulher negra no topo da hierarquia ficcional literária. Maria Firmina dos Reis foi provavelmente uma das únicas mulheres escritoras nos salões intelectuais do Maranhão, mesmo que estes se constituíssem metaforicamente por sob as páginas de periódicos com os quais colaborava. E assim como sobre Carolina Maria de Jesus, podemos dizer que Maria Firmina dos Reis faz uma escrita "de direito", "de lei", pois que ser negra, mulher e pobre, não impediu a essas mulheres serem sábias, pensadoras, escritoras. É ponto importantíssimo para o entendimento da alma negra iluminada representada nesse conto, que há o centro da lei, a qual aparece sendo descumprida no drama da escrava: a lei crística da humanidade, inclusive admitida entre os próprios brancos, e a lei do Estado brasileiro, a ser cumprida também pelos brancos, que a implementaram. Esse entendimento do progresso político relacionado com os lemas da revolução burguesa em processo de acolhimento pelo Estado brasileiro e seu imbricamento com o cristianismo talvez seja o ponto principal do didatismo de A ESCRAVA. Considerando-se o texto do ponto de vista da função relacionada ao ativismo político e pioneiro, obviamente o conto pode ser considerado feminista em sentido lato, apenas por ser uma das raras obras literárias produzidas e protagonizadas por mulheres no século 19. Estudiosos dizem que Maria Firmina dos Reis é única dentre a escrita negra da Amérida Latina deste século. Acrescente-se a excepcionalidade do fato de sua escrita integrar-se às forças negras anti-escravagistas mais amplas, as quais aparecem um pouco apagadas no imaginário histórico em geral e na atualidade, como se a abolição tivesse sido decididaexclusivamente pelos "brancos" e não houvesse resistência nem luta dos africanos e de seus descendentes contra a escravidão. Nesse sentido, a voz negra aqui cumpre o papel da voz da Razão. A estrutura do conto ocorre em camadas de três narrativas sobrepostas que também se espelham em personagens divididos em grupos de três, segundo suas tipologias: a senhora no salão, a senhora em ação, a história contada pela personagem Joana, ouvida pela senhora; três mulheres (incluindo a autora); três filhos; três figuras da lei: o feitor, o senhor de escravos, a lei de libertação. Assim como vimos em alguns contos de Machado de Assis, aqui também os signos do cristianismo católico são entrevistos nas figuras de Senhora-Joana-Maria, Feitor-Senhor-Herodes e outras. Soma-se à composição das personagens as figuras políticas mais evidentes, a narradora da história, não nomeada, chamada apenas de "senhora", mas, parecendo agora aos nosso olhos ligada - através de sua posição esclarecida, possível de ser ocupada pelas senhoras de toda a sociedade -, à prefiguração da Princesa Isabel e, obviamente, Joana, figura da mulher brasileira que deverá ser, juntamente com seus filhos, doravante, livre, como deve ser todo ser humano à luz do humanismo crístico e iluminista. Camadas de significação arquetípicas em associação somam-se a essas, tais como a figura da Terra, relacionada com a Mãe, e suas vinculações com Brasil e África, e obviamente a de Cristo, com a variação do martírio e exaustão encarnada também pela personagem Joana. Acrescenta-se que talvez seja inevitável espelhar os filhos de Joana, nomeados Carlos e Urbano, em Cosme e Damião, os santos-meninos tradicionais do sincretismo entre catolicismo e mitologia iorubá, de onde vem Ibeji, orixá que, dentre vários simbolismos, representa as forças da contradição e também dos opostos complementares, signos perfeitamente adequados para a formação das contradições estruturais da sociedade brasileira, que virá estruturada sobre os filhos de Joana. Através de um drama excelentemente didático, combinando as cores fortes de uma tragédia que poderia ser considerada exagerada e patética não fôra a verdade trágica da realidade de seu fundamento, Maria Firmina dos Reis faz uma prosa organizada de forma romântica, porém puxando atrás ao barroco, pela construção alegórica da personagem Joana - e puxando à frente ao realismo, ou seja, ao seu seu tempo histórico, atestando em sua escritura os tipos humanos, demasiado humanos da época. Dissipem-se os símbolos e resta a realidade da dor de uma mãe que chora por seus filhos, por seus pais, por si, por tudo; um sofrimento cru que a sensibilidade de Maria Firmina dos Reis jamais representaria degradando para um insuficiente e ambíguo naturalismo que começará a entrar em moda em fins de século. É notável, porém, o fato estético de que a pintura do "quadro" de Joana, no conto, remete ao barroco no sentido de apresentar concomitantemente, linhas do exagero no drama e finura de engenho na trama, uma peculiar finura que percorre os escritos da linha literária brasileira desde Padre António Vieira, e que vai se amalgamando às oralidades indígenas e negras, chegando à grandiosidade espetacular do carnaval. A afirmação do barroco brasileiro em A ESCRAVA é corroborada, nesse sentido, pela função didática à qual se liga a profissão da autora. Enfim, Maria Firmina dos Reis fritou o romantismo no óleo quente do realismo saindo-se com uma figura barroca lançada até nossos tempos pós-modernos, passando pelo século 20 como uma alegoria flutuante, ou seja, "teológica" (como concorcordaria Walter Benjamin), sustentando-se através do ajustamento proporcional de suas partes cuidadosamente discernidas em tríades simbólicas: políticas, arquetípicas e mitológicas. Por fim, por ser livre porque humana, Joana fôra chamada de doida pelos seus senhores e este nome, essa alcunha de louca, segue repetido, até mesmo pelos lábios de seu filho-anjo, Gabriel. Mas Joana é louca sobretudo porque sofre, e sofre acima de tudo por ter seus filhos sequestrados e escravizados, e por isso, no espaço intelectual brasileiro, levanta-se essa voz de mulher negra contra a escravidão. Maria Firmina dos Reis é mais conhecida - porém só muito recentemente lembrada - como "a primeira escritora brasileira". Seu livro mais famoso é o romance "Úrsula", publicado em 1860. Seus textos, atualmente, podem ser encontrados na internet. Agradecimentos a Walter Antunes, Léo Daniel da Conceição Silva, Francivaldo Souza da Silva, Michelle Duarte, Manoel Felipe Alves dos Santos, Érika Rodrigues e a todos os participantes do Círculo Literário de CiberLeitura, Projeto de Extensão do curso de Letras da Universidade Estadual do Tocantins-Unitins, em especial aos que se reuniram para conversar sobre A ESCRAVA, de Maria Firmina dos Reis, no dia 14 de Maio de 2022. Foto: Walter Antunes

  • Um Passeio de Domingo

    Odilia revisita pela sua própria pena, nos anos 2020, histórias vividas no sertão paulista à beira do rio Tietê na década de 1940. IN "Histórias que Vivi e pelas quais Sou Grata - livro primeiro" E eu que estava indo visitar a minha avó Cecília com meu pai paramos no armazém para comprar doces e refrigerantes para agradar meus avós e meus tios. E seguimos passando pela propriedade do senhor José Laureano e paramos para saborear a garapa, o engenho estava funcionando e o Anézio e o Luís moendo a cana e insistiram para que eu e meu pai tomássemos a deliciosa garapa. Em seguida fomos nós passando pelo sítio do senhor José Luciano e o sítio do Seo Eliziário Laureano, e depois o sítio do Seo José Prudêncio. Mas aí chegando na porteira do sítio do meu avô Victório, eu já estava muito cansada e então meu pai pegou-me no colo e colocou-me a cavalo em seu pescoço até a escada da porta da frente e então prestaram atenção à pessoa que o Senhor deu-me como pai. Também chegamos agora à minha avó Cecília que se sentiu feliz ao nos receber. E logo que chegamos a vó Cecília já providenciou o belo feijão que ela sempre soube cozer enquanto meu pai saudava ao senhor seu pai e aos seus irmãos que se encontravam todos em casa: Joaquim, Jorge e Justino, o Baianinho, que veio a mim saudar-me e viu que nós estávamos saboreando aquele feijão que a avó Cecília cozinhava em uma panela de ferro e era cozido no fogão à lenha, e com certeza era por ser cozido assim que ficava saboroso. E meu tio Baianinho, como sempre, foi subindo na árvore de mexerica com o seu embornal e desceu com ele cheio e veio nos servir porque ele sabia que a vó gostava de servir os alimentos acompanhados por frutas cítricas como mexerica, tangerina ou laranjas. E foi gratificante termos vindo visitar minha avó, e o meu pai deu aquele abraço em sua mamãe querida. Glória a Deus! E fomos nós juntos, a minha avó, eu, meu pai e o Justino, até a mina, para ver o funcionamento do monjolo, que estava a socar o milho para transformar em fubá. O delicioso fubá! E fomos nos despedir do meu avô Victório e dos meus tios e voltamos para a nossa casa, e meu pai, o senhor Levino, estava feliz, porque além do belo passeio que fizemos atravessando o bairro inteiro dos Cardoso, ainda teve a oportunidade de abraçar o Senhor Victório e sua mamãe Cecília Maria de Jesus. Ó Glória! Glória a Deus! Aleluia!! Odilia Fernandes Avelino é artista do sorrir, da palavra e do encontro, do coser e do cozer, das linhas e agulhas e das linhas e canetas, paulista brasileira, filha de índia e mineiro, também italiana de Cândia, Creta. fotos Walter Antunes

  • Para a Vitória de Lula Já no Primeiro Tempo

    Brincadeiras muitas e memes, muitos memes à parte, está na hora de resolver se isso é mesmo uma eleição da "última oportunidade de salvar o país", de "vencer o monstro do fascismo", ou apenas um entretenimento festivo para distração das mentes brasileiras. As coisas: 1 Um dos principais motes da campanha do PT é a urgência diante da miséria que assola o país, com boa parte da população sem ter o que comer, usando como retrato de tudo isso as cenas terríveis com as pessoas em desespero em filas para adquirir ossos. 2 Em entrevista recente publicada em revista norte-americana, fartamente reproduzida a sua capa pela auto-proclamada militância, o candidato Lula respondeu que não tem proposta econômica para o país neste momento, que a economia se discute depois da eleição compondo com as forças que vão governar (foi perguntado a ele sobre o futuro e não sobre o seu governo do passado). 3 Além dos inúmeros memes distribuídos para produzir envolvimento nas redes sociais, memes "fofos" e inócuos em termos de conquista de votos contra o "fascismo" e a tragédia que assola o país, memes que transmitem a ideia de que está tudo bem, tranquilo e feliz no país, surge agora a bizarra conversa de "lula com chuchu - um prato para acabar com a fome dos brasileiros". Mensagem ofensiva a quem não tem gás para cozinhar, que não tem dinheiro para comprar pão, para quem vai trabalhar à pé por não ter dinheiro para a condução. Mensagem ofensiva para quem ainda não perdeu o senso do ridículo e a própria inteligência. 4 Detalhe ainda mais constrangedor desse prato que vai "acabar com a fome" enquanto as pessoas estão na fila do osso, é que não surge da iniciativa dos simpatizantes, mas do próprio comando de campanha de Lula. Outro detalhe não menos absurdo: o preço do quilo de lula fresca é em torno de 60 reais. É isso mesmo? Essa brincadeira com receita para acabar com a fome dos brasileiros que está no site e na campanha do Lula começa com 60 reais o quilo? 5 Muitos eleitores e "militantes" passaram a ter um comportamento de replicantes de material inócuo que não toca as mentes da população, que precisaria ouvir e saber de argumentos para votar. Muitas pessoas passaram a ter o comportamento de fã-clube e não estão abertas ao debate político para fora das suas bolhas imaginárias. Se não conseguem dialogar com parceiros de longa data, como vão conquistar o voto do eleitor abduzido pela doutrinação fascista? 6 Pela máxima "derrotar o fascismo e salvar o Brasil" promove-se a perseguição a qualquer um que mantenha a lucidez e a crítica, com a utilização de acusações como "traição, entreguismo, fascismo" e outras bizarrices, acusações feitas pela "militância" que se transforma a cada dia em fã-clube cego e infantilóide. Vejam linchamento recente feito à Fernanda Montenegro. 7 Se alguém ponderar sobre o passado histórico e o perigo do vice, sobre a morosidade da campanha, a falta de clareza para o debate do momento presente em contrapartida com as realizações de 20 anos atrás, se debater sobre a incoerência de alianças com aqueles que tramaram contra a presidente Dilma, a pessoa é imediatamente colocada no paredão fantasioso dessa "militância fã-clube". Na impossibilidade do fuzilamento real nesse paredão acontece o cancelamento e a inclusão nas listas (todos sabem que existem essas listas de cancelados). A pessoa nem precisa entrar na esfera de se assumir compromissos definitivos com os povos indígenas, quilombolas, trabalhadores sem acesso à terra, qualquer coisa dita serve como pretexto para cancelamento. 8 Não bastasse a inoperância dos partidos políticos, das instituições brasileiras, da população, que permitiu que o ocupante (mesmo com o genocídio) se mantivesse no cargo maior do país e ainda que pudesse estar de igual para igual com os outros candidatos como se fosse um democrata e não um inimigo da democracia e do povo, ainda temos um posicionamento festivo e pouco definido da campanha de Lula. Detalhe importante é que muitos do "fã-clube" consideram as outras candidaturas um desserviço ao enfrentamento do "candidato fascista", exigem a retirada dos candidatos e o apoio direto ao Lula, algo que contraria a essência da democracia e tudo o que Lula sabiamente sempre defendeu: a liberdade e a pluralidade de visões e opiniões. 9 Toda semana surgem notícias de alteração do comando da campanha de Lula. Isso sugere transferências de responsabilidade, ninguém assumindo responsabilidades, o que contradiz completamente o argumento da gravidade do momento e da importância desta eleição, "a última oportunidade de nossas vidas de construirmos um país de verdade". 10 Ao mesmo tempo em que se faz a campanha pela necessidade de eleger uma grande bancada "progressista" para o congresso, pouco se propaga e pouco se define efetivamente. Vejam o exemplo do estado de São Paulo sem nenhum nome definido para a disputa ao senado. Vejam Minas Gerais sem nenhum candidato do campo "progressista" ao governo estadual. 11 Um observador atento às pesquisas, sabe que a vantagem que a candidatura Lula apresenta no atual momento (em qualquer instituto de pesquisas) não é suficiente para vencer a eleição no primeiro turno e que da forma que o cenário está posto também não garante vitória no segundo turno. Apenas a conquista de mais eleitores através de trabalho incessante no cotidiano das ruas junto ao povo é que pode produzir a vitória. Redes sociais, novas mídias e antigas importam, mas nunca substituirão o trabalho da conversa olho no olho com o eleitor. O problema aqui é: o que foi feito da aguerrida militância? Quem foi que ano a ano trabalhou pela desmobilização da militância através do esvaziamento dos núcleos de participação do partido? 12 Numa ponta da teia temos um "fã-clube" agressivo que não aceita nenhum questionamento sobre qualquer tema que envolva personagens do PT ou das administrações passadas do partido, nada que envolva debater antigas e novas alianças com personagens não apenas suspeitos, mas condenados por corrupção, pegos com as malas de dinheiro do povo na mão. Os partidários do método "fã-clube" de fazer política pregam como fanáticos: "não é hora de debater", "o debate promove divisão", "o Brasil vai acabar se Lula não vencer no primeiro turno", "é a luta do bem contra o mal", "você prefere o satanás e não o Lula?". Parecem os seres replicantes da "Revolução dos Bichos" seguindo o "Garganta", porta-voz da fábula. Na outra extremidade da teia temos um repetitivo e monótono discorrer sobre um passado que para o povo é longínquo, distante da realidade de 2022, longe do que se espera para o futuro, uma não abordagem dos temas essenciais ao povo: trabalho, emprego, comida na mesa para a família. Esse discorrer vazio de "feliz de novo" não toca o coração das pessoas, nem as que viveram o período do governo Lula e Dilma, nem as que não haviam nascido em 2003 e vão votar neste ano. Risoto de chuchu com lula, foto de sunga, foto de bolo de casamento, remix de música, coraçãozinho feito com as mãos e beijinhos pra torcida são produtos para a bolha do "fã-clube", não dialogam com a massa dos pobres que foi obrigada a se adaptar a sobreviver sem contar com nada e ninguém, batendo o escanteio e correndo para cabecear (para usar uma imagem simples do futebol que Lula tanto adora). O povo diz em resposta: "ACORDA!!" 13 Por tudo que aconteceu desde o fim da ditadura dos generais, nessa sempre nascente e frágil democracia brasileira, há percepção de que a letargia e a falta de clareza e objetividade, se não forem resolvidas até o final do mês de maio, impossibilitarão o tempo para recuperação posterior. Não adianta deixar para setembro, quando as torneiras dos recursos governamentais (dinheiro do povo) estiverem abertas, quando as redes de mentiras e ódio estarão a todo vapor e as lideranças locais e regionais de coronéis estiverem em plena ação colocando o cabresto sobre o voto do eleitor. Nota: Essas observações são de quem está atento ao país e às eleições, eleições que muitos querem seja tutelada. Não consideramos aqui apenas o momento "bom" das pesquisas, mas o que pode acontecer até o 31 de dezembro de 2022, incluindo nisto o comportamento deslumbrado que levou aos resultados da eleição de 2018. Apenas quem lucra com o sofrimento do país ou quem é louco deseja a continuidade do que está aí destruindo o Brasil e matando o seu povo. Todos os que têm críticas aos governos do PT, ainda assim torcem por uma vitória contra o genocida para que cesse a insanidade que tomou conta do país. Quem tem lucidez sabe que o povo terá que passar a fazer política no dia a dia. Não basta votar e esperar que uma única pessoa reconstrua ou construa um Brasil que está para ser feito desde 1500. Ainda há tempo para se trabalhar pela vitória. Se é que o objetivo disso tudo é mesmo a vitória sobre o "fascismo" para reconstruir o país e não apenas cumprir tabela, jogar pra agradar a torcida "fã-clube" organizada, sem na verdade se importar com o resultado final, um show de entretenimento. Se for pra valer mesmo tem-se que abandonar o meme-feliz, apresentar propostas sobre o hoje (não o passado), colocar as sandálias e ir até onde o povo está. Ainda há tempo! Desde 1500, ainda há tempo! Saudações do Corinthianismo! Boa Lua de Maio para Todos!!

  • Os dilemas da vida de Rosa Luxemburgo num filme de Margarethe von Trotta

    O filme “Rosa Luxemburgo” propõe não apenas uma leitura historicamente contextualizada da faceta política da revolucionária polaco-germânica Rosa Luxemburgo (1871-1919), mas também do seu lado humano e feminino, ou seja, da mulher sensível, culta e intensa, sempre cercada de muitos amantes. Os momentos naturais de fragilidade e hesitação -- sim, uma Rosa -- são conjugados com os de determinação e coragem -- todavia, uma Rosa vermelha --, destacando-se como intelectual e líder política em uma época na qual as mulheres sofriam, ainda mais do que hoje, com toda ordem de preconceitos, mesmo nos círculos ditos “progressistas”. Conforme é apresentado no filme, Rosa Luxemburgo (interpretada pela atriz alemã Barbara Sukowa) é uma mulher que, não obstante ser oriunda de uma classe social abastada, assume um compromisso firme com a luta da classe operária de seu tempo, sem recuar mesmo diante da perseguição, da prisão e da ameaça à sua vida. Não se sente amedrontada pelo autoritarismo dos Impérios russo e alemão, tampouco teme discordar com veemência das posições de seus “camaradas” da social-democracia. Movida por uma avassaladora paixão, sofre uma espécie de transfiguração quando está em âmbito público: a mulher sensível e afável aparece como uma oradora implacável e sagaz diante da militância partidária e das massas, respeitada até mesmo pelos adversários conservadores. Entremeado por momentos de lirismo, de lembranças da infância, dúvidas e angústias existenciais, o filme delineia os principais momentos da biografia política de Rosa Luxemburgo, desde sua prisão na Polônia (na época, sob a égide da Rússia) até seu assassinato trágico durante a revolução na Alemanha entre 1918-1919, passando pelo período de prisão durante a I Guerra Mundial. Ao longo do filme são retratadas algumas lideranças históricas do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), como Karl Kautsky, E. Bernstein, Clara Zetkin, Karl Liebknecht, entre outros. Além disso, uma parte significativa das cenas tem por enfoque a relação de Rosa com esse Partido, amiúde marcada por tensão e polêmica. Conforme é revelado pelo desenrolar da trama, os dilemas de Rosa com o SPD podem ser resumidos em duas grandes questões. A primeira delas é a necessidade do Partido construir uma aproximação com as massas, radicalizando sua estratégia, na concepção de Rosa. O Partido opta pela via da democracia parlamentar, o que, com o tempo, se revelará uma capitulação diante do jogo político da burguesia, a qual desarmará qualquer perspectiva de ruptura revolucionária. A segunda é a questão do imperialismo e do militarismo em que o capitalismo do começo estava mergulhado desde o final do século 19. Rosa pressente nuvens carregadas a nublar o céu da Europa, até a tempestade da Guerra irromper furiosa no horizonte, com um nível de barbarismo e mortandade como nunca antes tinha sido presenciado. Como escreveu na época o poeta austríaco Georg Trakl, cujo ulterior e dramático suicídio teve relação inequívoca com os horrores da Grande Guerra: “...E levemente, nos canaviais, soam as flautas sombrias do outono./ Oh, dor orgulhosa! Vós, brônzeos altares,/ Uma dor portentosa alimenta hoje a chama escaldante do espírito,/ Os filhos que ainda hão-de nascer.”(“Grodek”, 1914; tradução: J. Barrento) O filme de Margarethe von Trotta expõe o posicionamento majoritário dos sociais-democratas alemães, os quais, apesar dos protestos de Rosa e de outros militantes, acabam por apoiar a entrada do Império alemão na I Guerra, aviltando o internacionalismo da tradição socialista e operária. A posição radical de Rosa contra um conflito bélico “nacionalista” a ser travado por trabalhadores contra trabalhadores nas trincheiras tem um custo, entretanto: a prisão. O filme reconstrói com a devida dramaticidade o momento em que, com a Revolução Russa de 1917 e a derrota acachapante da Alemanha na Primeira Guerra, cujo resultado será o colapso do Império alemão e a consequente criação da República de Weimar, Rosa Luxemburgo e seu colega Karl Liebknecht (filho de Wilhelm Liebknecht) separam-se em definitivo da social-democracia no poder e optam por uma tentativa de insurreição armada no quadro de crise política e social do país. A revolta, porém, malogra, pois provavelmente seus artífices políticos superestimaram a força e influência dos espartaquistas no meio militar. Em seguida, os revoltosos são reprimidos ferozmente com o apoio e conivência do governo de coalização do qual a social-democracia participava. Nesse contexto de agitação e derrota política, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht acabam assassinados de forma brutal por grupos paramilitares de direita que, mais tarde, seriam a base de sustentação do nazismo... O martírio após uma revolta fracassada -- como outrora o trácio Espártaco -- foi o último voo dessa águia, como Lênin a chamou posteriormente, em forma de homenagem, apesar da existência de algumas divergências entre eles. Embora o roteiro não explore tanto este aspecto, é amplamente conhecido o fato de que Rosa enxergava tendências perigosas mesmo no leninismo, como afirma a pesquisadora Isabel Loureiro: "Ela se opunha à concepção leninista de partido-vanguarda porque temia acima de tudo a separação entre dirigentes e dirigidos, chefes (como dizia ironicamente) e massas, tal como estava acontecendo no processo de burocratização da social-democracia alemã, que ela acompanhou de dentro. No seu entender, o papel da liderança é acabar com a divisão entre vanguarda e massa, é transformar a massa em líder de si mesma. A disciplina arbitrária imposta pelos dirigentes às bases retira a responsabilidade delas e as infantiliza, num movimento que leva o partido a transformar-se num aparato burocrático dominado por uma camarilha de líderes ‘infalíveis". Rosa Luxemburgo, contudo, não viveu mais alguns anos para presenciar nos rumos da Revolução socialista na Rússia o hiato crescente entre dirigentes e massa, partido e classe operária, a tomar contornos policialescos, autocráticos e soturnos com a emergência do estalinismo. Pode-se dizer em retrospectiva, sem exagero ou cair em um clichê: o fracasso da revolução socialista na Alemanha, com o apoio dos sociais-democratas, não só ceifou a vida de figuras políticas extraordinárias como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, mas abriu caminho para algo muito pior do que a tirania do II Reich e o rufar de tambores da Primeira Guerra: a solução nazifascista, alimentada em um clima de crise social e econômica, humilhação, ressentimento e desespero que marcaria a Alemanha dos anos 20. Filme: “Rosa Luxemburgo” (no original, "Rosa Luxemburg"); Direção: Margarethe von Trotta; País: Alemanha/Tchecoslováquia; Ano: 1986 ARCARY, Valerio. O assassinato de Rosa Luxemburgo à luz da História, s/d. Disponível In: http://www.cefetsp.br/edu/eso/valerio/artigosinergia.html BERCOVICI, Gilberto. Estado e marxismo no debate social-democrata dos anos 1920-1930, In: Direito, sociedade e economia: leituras marxistas. Alaôr Café Alves et. Alii. Barueri: Manole, 2005, pp. 73-90. BUONICORE, Augusto. Rosa Luxemburgo: a Rosa Vermelha do Socialismo. Portal Vermelho, s/d. Disponível In: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=5626&id_coluna=10 LOUREIRO, Isabel. Rosa Luxemburgo era uma defensora apaixonada da Liberdade, Entrevista à Fundação Rosa Luxemburgo, 05/08/2013. TRÓTSKY, Leon. Tirem as mãos de Rosa Luxemburgo!, 1932 (original). Causa Operária online. Disponível In: http://www.pco.org.br/teoria/tirem-as-maos-de-rosa-luxemburgo/eojo,s.html Daniel Plácido é professor do ensino básico, licenciado em Filosofia pela USP, especialista em História pela PUC-SP e mestrando em Filosofia pela UFU. Atuou também como professor em cursinhos populares. Co-editor da revista Mística Revolucionária: https://misticarevolucionaria.com.br/

  • No Pomar da Vida & O Trabalhador

    Duas músicas do grande baluarte do samba Seo Carlão do Peruche exclusivas para a Katawixi. No Pomar da Vida & O Trabalhador, do trabalho do Seo Carlão do Peruche & Os Sobrinhos. Os Sobrinhos do Seo Carlão são Olegario Junior (violão), Anderson Borba (cavaco), Ronaldo Gama (baixo, arranjos, direção musical), Ananza Macedo, Luama, Ligia Fernandes (coro), Koka Pereira e Tiago Prates (percussão), Léo Carvalho (bateria), Romulo Larico Pampa (trombone). Janis Narevicius e Diego Bueno (assistentes de produção). Realização de Walter Antunes para Astúcia Artes. Seo Carlão do Peruche fotos por Walter Antunes

  • Achados e Perdidos do Ska!

    Durante certa pausa da música pelos palcos aproveitei pra pesquisar e estudar mais sobre a história da origem do ska. Fazia tempo que queria dar uma atenção para a história e não só escutar, coisa que faço muito. Sempre fui muito curioso em relação ao período que antecede o ska, antes dos anos 50 até chegar na batida. Como de fato chegaram ao ritmo? As explicações são sempre muito resumidas e com poucos detalhes do período pré-ska, pelo menos para mim. Bastante gente pesquisou dos anos 2000 pra cá e a internet pra isso é maravilhosa. Ter acesso a artigos, matérias, estudos de universidades e muita música. Lembro de ir nos primeiros festivais do Bourbon Street, quando ainda ocorriam lá na rua, na Alameda dos Chanés, e via as bandas de New Orleans tocando zydeco, rhythm and blues e algumas músicas com a base no contra-tempo (off beat). Sempre me perguntei por que aqueles músicos americanos estavam tocando a base no contra-tempo, igual os jamaicanos tocam. Os jamaicanos os influenciaram ou foi o contrário? Quase a mesma pergunta me fiz sobre bandas klezmer de música judaica, e ainda algumas músicas eruditas europeias do passado com passagens no contra-tempo. A música é universal, claro, coincidências acontecem, mas muitas também têm uma explicação. Escutando muita música, lendo artigos, matérias e até uma tese genial do estudioso Paul Kaupilla, que me esclareceu muita coisa, segue aqui um resumo desses meus estudos. A história de como o ska, a batida, o ritmo nasceu é sabida, ou melhor: as muitas histórias. Foram vários os fatores que levaram até chegar à batida do ska. Muita gente e caminhos levaram à origem da música jamaicana. Mas eu nunca soube dos detalhes, olhando de fora e longe dessa época é fácil intuir muita coisa, mas vou tentar destrinchar um pouco. Sabemos que o ska é a mistura do mento, do calypso caribenho, com o jazz e o rhythm and blues americano, diga-se de passagem, esses dois ritmos caribenhos são misturas de ritmos africanos com melodias europeias vindas dos colonizadores. A Jamaica foi colonizada por espanhóis e ingleses. A clássica história é que a ilha da Jamaica, por ser perto dos Estados Unidos, sintonizava as rádios americanas e os músicos tentavam reproduzir os sucessos americanos. Misturado à forte cultura local do calypso e do mento, surge o ska. Tá, mas e aí, como isso aconteceu? Não foi da noite pro dia! A Jamaica, assim como muitas ilhas no Caribe, teve como primeiros colonizadores, os espanhóis, que dizimaram todo o povo nativo, os indígenas Taino e Arawak. Eles chamavam a ilha de Xaymaca (terra da madeira ou da água). Após a guerra, em meados de 1600, a colônia virou inglesa e muitos escravos continuaram a ser levados pra ilha formando uma “nova sociedade” Jamaicana. Música dos escravos americanos de New Orleans e Jamaicanos Nos Estados Unidos proibiram os escravizados de cantar e tocar seus tambores, exceto em New Orleans, onde os escravizados tiveram menos restrições às suas músicas (pelo menos por um período). Aos fins de semana era permitido batucar e cantar na famosa Congo Square, e isso explica por que New Orleans é o berço do jazz. A proximidade geográfica de New Orleans com a Jamaica também coincide com o fato dos escravizados da Jamaica poderem cantar e tocar mantendo sua tradição musical vinda da África. Os donos das plantações acreditavam que eles "rendiam mais" com a música. A batida burru, vinda do oeste da África mais tarde, deu origem à música de culto rastafari e ainda foi levada ao ska por Count Ossie e Loyd Knibb, figuras importantíssimas na criação do ska. Esse pode ser considerado um primeiro ponto comum, entre a Jamaica e New Orleans, que mais tarde, nos anos 50, também teriam em comum o contra-tempo (offbeat ou afterbeat), em suas músicas. Anos 40 e 50: Big Band (jazz, rumba, merengue, cha-cha-chá e rhythm and blues) Não se fala muito do período antes do ska. Fala-se do calypso e do mento, mas nos anos 40 e 50 haviam Big Bands e combos que tocavam jazz, merengue, rumba e uma série de outros ritmos caribenhos. Um adendo para a formação dessas Big Bands, elas não eram numerosas como as americanas. Tinham um formato mais reduzido, o que baixava o custo e facilitava toda a logística de trabalho por ter menos pessoas. Baba Motta, The Val Benett Orchestra, Sonny Bradshaw 7, são algumas dessas orquestras ou Big Bands, mas a The Eric Deans Orchestra foi sem dúvida a mais importante delas, e estou falando de pelo menos vinte anos antes do ska. Esse músico multi-instrumentista tem um papel muito importante na história da música jamaicana. Não se fala muito dele, por haver pouco registro, mas é um forte pilar da construção e do desenvolvimento da música jamaicana. Muito do que aconteceu nessa fase pelas mãos do Eric teve reflexo na origem do ska. Merece todo o reconhecimento da sua importância. Alpha Boys School Pra quem não sabe, na Jamaica, muitos músicos saíram da Alpha Boys School, um orfanato que por conta de uma freira "guerreira", sim uma freira, a "Sister Ignacious", que incentivou o programa de música da escola e com isso formou alguns dos principais músicos da história da música jamaicana, tais como: Lester Sterling, Johnny "Dizzy" Moore, Tommy MacCook, Don Drummond, Rico Rodrigues, Yellow Man, Vim Gordon e muitos outros. Eric Deans foi professor de música na Alpha Boys, um grande incentivador, que inclusive formou a primeira banda só de mulheres na Jamaica. E eu nunca soube disso e achei uma foto! A importância da Alpha Boys, da Sister Ignacious, e Eric Voltando à história da The Eric Deans Orchestra. Alguns desses músicos que citei que tocaram na orquestra do Eric, saíram da Alpha Boys. O genial trombonista Don Drummond foi um deles. Tocavam uma série de ritmos, merengue, calypso, mento, rumba e o jazz. Então temos um bom ponto de partida. De fato uma orquestra tocando todos esses ritmos foi começando a fermentar ideias na cabeças dos músicos que ali tocavam. E se lá atrás nos Estados Unidos os escravizados cantaram e tocaram seus tambores criando sua nova música, os jamaicanos aqui em 1940 dão o início à fusão escancarada da música americana (o jazz) com ritmos caribenhos. Olha onde começa isso!! Não é só lá no fim dos anos 50, como muito se fala. Tudo bem, no fim dos anos 50 para os 60, foi o auge, a transição mesmo, mas foi um processo longo até chegar à batida do ska. A Jamaica é uma pequena ilha no Caribe, porém por ser ilha e muito perto de outras ilhas, sempre esteve muito aberta, sempre circulando muita gente. Muitos dos músicos que citei nasceram em Cuba (Rico Rodrigues, Roland Alphonso, Tommy MacCook). Com todo esse movimento a orquestra de Eric começa a fazer sucesso e a excursionar pelos Estados Unidos, Inglaterra e Caribe. Após uma excursão no Haiti, Eric Deans volta para a Jamaica como o rei do merengue, tocando em hotéis como o famoso Colonel Club. Porém, no fim dos anos 50 a orquestra acaba, seus músicos já famosos começam a atuar nos estúdios que começam a ser montados na Jamaica, gravações começam a pipocar e com isso começa a fase do pré-ska ou “early ska”. Vejam a importância desse momento na história da música jamaicana, quase o Skatalites inteiro já estava ali no começo, participando de uma orquestra, aprendendo e tocando esses ritmos todos, incluindo Lloyd Knibb, o futuro baterista dos Skatalites. Esses ritmos fazem parte da base do que viria a ser o primeiro ritmo genuinamente jamaicano, o ska. Encerrada essa etapa, em que foi dado o ponta-pé inicial de ritmos caribenhos com o jazz americano, a gente entra num outro estágio que é o rhythm and blues americano que dá origem ao rhythm and blues jamaicano. O rhythm & blues e o sound system O R&B na Jamaica se mistura muito com a origem do sound system jamaicano. Sound system eram sistemas de som, com caixas e toca discos, que foram se popularizando por serem mais baratos para os promotores de baile. Ao invés de pagar mais caro por uma orquestra que tem muitos músicos, um dj resolveria tudo e ainda não há o intervalo de descanso que as orquestras faziam e deixavam a pista esfriar, levando o público embora para o próximo baile. Além disso esses bailes eram ao ar livre, mais acessíveis e baratos para o público que era muito pobre. Aqui começa um outro importante ponto, os donos de sound system. Isso daria uma série de tv fantástica com todas as confusões e a indústria musical que se forma a partir do sound system. Quando digo indústria isso vai além da música jamaicana, chega ao rap e à música eletrônica. O sound system e seus donos foram outro pilar importante em toda a produção e distribuição da música jamaicana. Com o passar dos anos os donos viraram produtores, gravando seus próprios artistas. Pra citar alguns nomes principais: Duke Reid e Sir Coxsone Dodd. Mas um pouco antes de chegarem nessa fase de produzir, eles tinham que comprar discos de orquestras e de artistas de R&B americano, lembrem-se que isso é nos anos 50, onde não se tinha toda a facilidade de hoje. Era roots o lance todo, vencia quem tinha as melhores e mais exclusivas músicas. Inclusive soldados americanos da base militar trocavam discos por entradas em prostíbulos. Os jamaicanos começam a viajar para os Estados Unidos em busca de discos, músicas exclusivas pra tocar em seus sound systems, e muito, mas muito rhythm and blues é tocado nas festas. Com uma particularidade que fez toda a diferença, o R&B do sul dos Estados Unidos, um detalhe muito importante. Muito provavelmente o contra-tempo presente em toda a música jamaicana do final dos anos 50 vem daí. Artistas americanos como Fats Domino, Rosco Gordon, Louis Prima, entre outros foram bastante populares na Jamaica. Eles têm em comum na sua música o contra-tempo (off beat ou after beat) bem acentuado e muito presente em suas composições. Rosco Gordon é o artista que mais usava esse contra-tempo em suas músicas. Dizem que ele não era um pianista muito técnico e que por isso se resumia a fazer o off beat nas músicas. O fato é que isso gerou uma identidade e uma ligação imediata com o público jamaicano. Rosco foi muito tocado e excursionou na Jamaica. Os contra-tempos já namoravam os ouvidos dos produtores e músicos jamaicanos da época. Essa ligação fica evidente quando os saxofonistas Lester Sterling e Roland Alphonso, ambos do futuro The Skatalites, tocaram com Rosco Gordon, absorvendo ainda mais a música e o estilo de Rosco. R&B jamaicano ou blue beat No fim dos anos 50, por volta de 58, boogie woogie, jump blues e muito R&B são gravados na Jamaica. Laurel Aitken e muitos cantores de calypso entram em estúdio pra gravar e alimentar os sound systems que estavam a todo vapor. Um pouco depois, por volta de 1960, nasce de fato a gravadora Blue Beat, que também vira nome de um sub-gênero, o rhythm and blues jamaicano, praticamente um "early ska". Exatamente onde entra o contra-tempo na música jamaicana, e aqui temos um grande primeiro passo para se chegar ao ska. O sub-gênero Blue Beat “nasce” com o famoso contra-tempo, o ritmo continua shuffle mas a base, as guitarras e o piano são todos no contra-tempo. Um passo importante para a mudança e a criação de algo novo. Falando musicalmente, fica com o acento no “E” em compasso 4/4: “um E dois E três E quatro ” e segue repetindo esse modelo na base. Vejam bem, esse primeiro uso do contra-tempo na música jamaicana é creditado ao Prince Buster, que pediu ao guitarrista Jah Jerry Haynes (futuro guitarrista do Skatalites), pra tocar e dar ênfase ao contra-tempo. Produtor, músico e compositor esperto que era o Prince Buster, certamente já ouvira antes esses ecos do contra-tempo vindo das raízes do R&B americano pelo já citado Rosco Gordon e Fats Domino, mas isso não tira o brilho nem a importância desse momento. Derrick Morgan, Theo Beckford, Cluett Johnson e muitos outros gravam o blue beat (R&B jamaicano). Ainda não chegamos à batida do ska, estou falando só do contra-tempo, vejam que rolou mesmo uma transição para se chegar na batida, está quase chegando no que se tornaria o ska, mas ainda não é. Podem escutar as gravações desses artistas que citei de 1960 até 61/62 são praticamente imitações de R&B, boogie woogie, tudo em batida shuffle e com a base no contra-tempo. Por isso mesmo os primeiros ska's são shuffle, é uma transição quase como um degradê mesmo, passo a passo. A batida do ska Count Ossie foi fundamental para se chegar à batida do ska. Count foi um percussionista da comunidade rastafari. Ele levou o nyabing pra suas gravações, e o burru, vindo da África para os campos dos escravos, vem à tona na música "pop" jamaicana. Ossie conheceu Prince Buster e Coxsone Dodd e gravou muitos singles como a música "African Shuffle". Escutem! É maravilhoso!! São metais com guitarra e percussão. Não tem bateria, o que ligou diretamente à música vinda da África (burru) com a música que estava sendo feita naquela época, que já era fruto de outras combinações da música africana. Aí começa a surgir um caminho novo ritmicamente falando, essa fase do Count Ossie marca e abre caminho para o ritmo ska surgir. Em contra partida, na bateria convencional gravando o rhythm and blues jamaicano, tínhamos o baterista Arkland "Drumbago" Parks e também o lendário Lloyd Knibb a quem é creditada de fato a batida do ska. Vamos lembrar do Lloyd, ele tocou no The Eric Deans Orchestra, junto com boa parte do que viria a ser o The Skatalites. Sua base e sua carreira desde o início sempre foi tocando ritmos latinos como a rumba, o bolero, o cha-cha-chá e o jazz. Por muita sorte no fim dos anos 50, ele foi parar na banda do Count Ossie, onde teve contato com os tambores nyabing e o burru. Isso foi decisivo e fundamental para o nascimento da batida ska, esse encontro com Count Ossie foi crucial, provavelmente, para toda a música jamaicana que seguiria dali em diante, para até depois do ska, ainda com o nascimento do rocksteady e do reggae. Enfim, nasce o ska! Um fato muito interessante é que em 1962 ainda antes do The Skatalites, Coxsone conversa com Tommy MacCook e reúne músicos para gravar o disco "Jazz Jamaica - From The Workshop". A batida do ska ainda não está ali. Não faria sentido gravar um disco de jazz sendo que a principal batida da música jamaicana já existia. Por volta de 62 mesmo, dizem que o produtor Coxsone Dodd, chegou para Lloyd Knibb e pediu pra ele puxar mais os metais, com uma pegada mais enérgica, provavelmente os músicos de metais estavam ralentando (característica dos músicos de sopro jamaicano, eles sempre tocam pra trás, layback), então ele começou a tocar o burru na bateria, de alguma maneira sintetizou nas peças da bateria a batida com o segundo e o quarto tempo fortes, provavelmente criando o famoso "One Drop" (baqueta no aro da caixa e batida do bumbo juntos) da música jamaicana e mantendo isso reto, direto, então manteve o shuffle no chimbal e nasce aí a batida do ska. O primeiro ritmo nascido e criado na Jamaica. Após muito tempo tocando, reproduzindo e imitando músicas de fora da ilha, surge algo novo, bombástico e ainda num momento histórico. A Jamaica estava se tornando independente da Inglaterra em 1962. Imaginem que momento! E agora o ska se une ao contra-tempo da base, e o contrabaixo seguindo firme no chão com seu "walking" característico do jazz e do R&B. Nasce o ska shuffle que se desenvolve muito a partir do seu nascimento. O nascimento do Skatalites O nascimento e o desenvolvimento do ska vem de muita mistura, de se fazer versões. A batida se desenvolveu e o próprio Knibb misturou ainda com muita coisa, ele mesmo dizia. Inclusive com a nossa bossa-nova. Escutem "Ska Ba". Tommy MacCook, numa entrevista, diz que é influência da bossa, é possível identificar na batida Lloyd Knibb mudando o acento no aro da caixa. Todas essas pessoas aqui citadas são, para mim, os criadores do ska. É difícil creditar as pessoas e seus feitos, mas todos de alguma maneira deixaram sua marca e acrescentaram algo. A história dá muita margem a interpretações e o legado que fica é a música, que conta mais que qualquer outro dado ou data. Ainda é curioso que os jamaicanos sempre tiveram um jeito muito particular de tocar o jazz, sempre tentaram reproduzir a música americana, como a de Glenn Miller, ou até o virtuosismo do Charlie Parker e Dizzy, ou as muitas músicas do Mongo Santa Maria (cubano) que pegaram de inspiração pra compor inúmeras músicas do Skatalites, mas ouso dizer que nunca soou igual. A raiz da música deles era muito maior, muito forte, por isso foram, fizeram e sempre serão muito autênticos. Dessa história toda nasce o The Skatalites, e o nome do primeiro disco não poderia ser outro. "Ska Authentic" de 1964. O Skatalites foi a reunião dos melhores músicos de estúdio da Jamaica, a reunião foi de 1963 ao início de 1965. Membros originais: Don Drummond (trombone), Tommy MacCook (sax tenor), Roland Alphonso (sax alto) Johnny "Dizzy Moore" (trompete), Jackie Mittoo (piano) Jah Jerry Haynes (guitarra), Lloyd Brevett (baixo acústico) e Lloyd Knibb (bateria). Cantores: Jackie Opel, Doren Shaffer, Lord Tanamo. Segundo relatos, muitos músicos gravaram e não dá nem pra saber quem estava em determinadas sessões de gravação, mas não dá pra deixar de citar o genial guitarrista Lynn Tait, o trombonista Rico Rodrigues, o grande mestre da guitarra Ernest Ranglin (que ganhou uma guitarra do próprio Les Paul, quando o viu tocar.), e um então jovem cantor, Bob Marley. Reparem que durante esse período dos anos 50 em diante, tem sempre a figura do produtor por trás. Sempre o interesse comercial em fazer a música dar certo, e vender, e eu não tenho dúvidas que isso de alguma maneira impactou no sucesso que o reggae teve no mundo anos depois do ska. Felippe Pipeta é instrumentista e compositor fotos de Felippe Pipeta por Walter Antunes

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