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  • Foto do escritorLuama Socio

Histórias do quilombo Ilha de São Vicente no rio Araguaia


Dona Maria Rita; foto de Walter Antunes

No meio do rio Araguaia, na região conhecida como Bico do Papagaio, está localizada a Ilha de São Vicente, uma das maiores ilhas fluviais do Brasil. Ali vivem os remanescentes quilombolas que contaram um pouco da história de suas vidas para uma equipe da Universidade Estadual do Tocantins. As personagens e suas histórias podem ser conhecidas, lidas e ouvidas acessando-se o site www.historiasdailha.com

O quilombo Ilha de São Vicente é um espaço privilegiado de conservação de histórias de vidas humanas por um lado ligadas fortemente à natureza e por outro abandonadas pelas políticas sociais de Estado.

A Ilha, que originalmente pertencia a um território configurado pela etnia indígena dos Araras, passou a ser habitada na segunda metade do século XIX por ex-escravizados que “ganharam” a terra de seu antigo “senhor” por ocasião da Lei Áurea e prossegue ocupada pelos descendentes desses primeiros habitantes, resistindo em suas formas de vida face às pressões do mundo globalizado, aos conflitos de interesses políticos e econômicos e à degradação dos recursos naturais.

Assim, esse mesmo território que outrora fora considerado um lugar distante e adequado - segundo a ótica do senhor de escravos -, para exílio dos indesejados libertos, agora é cobiçado por inúmeros invasores e a legitimidade da propriedade é constantemente questionada pelos próprios poderes institucionais de Estado que, a despeito da existência das leis, exprime a realidade do nosso contexto de injustiças sociais.

As histórias dos habitantes da Ilha vão de encontro à necessidade das vozes dos portadores de perspectivas de vida não-hegemônicas se fazerem ouvir. Pela própria constituição histórica de sua estrutura política, os saberes quilombolas tendem a ser desprezados como válidos pela sociedade padronizada dos costumes consumistas da era da globalização em massa. O fato evidente da exclusão cultural, por outro lado, tendo já sido discernido, enseja o posicionamento nitidamente favorável a um esforço de reversibilidade com vistas à recuperação de uma espécie de riqueza até então desconhecida.

Os signos dos saberes dos ancestrais do povo são hoje imprescindíveis para a formação da noção de cultura e pertencimento nas mentes e corações das pessoas. Caso isso não ocorra os seres humanos correm o risco de tornarem-se cada vez mais alienados de sua própria noção de origem, do seu entorno geográfico, ambiental, cultural e político, enfim, de sua identidade, tornando-se meros autômatos consumistas da ordem econômica predadora, massificadora e desterritorializada da globalização capitaneada pelas grandes corporações financeiras.

Para caminharmos em direção à construção de um entendimento amplo do conceito de cultura é necessária a integração das amplitudes plurais identitárias das construções sociais. O reconhecimento das pluralidades identitárias ocorre por meio da proteção e cultivo das riquezas imateriais tanto quanto das materiais.

Atualmente não se desconhece o fato de que o ser humano - como ser simbólico na era do conhecimento científico e da predominância dos meios de comunicação de massa, propagadores de imagens e sons que funcionam como modelos universais - passa por um empobrecimento da capacidade imaginativa ativa, pois tornou-se geralmente um receptáculo passivo das mensagens massificadas. Posto isso, a disponibilização dessas histórias pretende contribuir para a dinamização entre a dimensão simbólica das poéticas quilombolas, recheadas de figuras do ambiente natural, e a construção de um conhecimento cultural que deve ser ressignificado continuamente no fluxo histórico das relações identitárias e estéticas.

A dinamização entre símbolo e identidade/afetividade no nível do imaginário pode ser sentida de imediato à leitura ou audição das histórias. Por exemplo, Fátima Barros nos conta a lenda da origem dos rios Araguaia e Tocantins, em que um é “da cor da lua” e o outro é “da cor do sangue”, sendo que antes de serem rios, eles foram duas cobras. A simples consideração da força simbólica dessa descrição resgata e elucida aspectos do imaginário associados ao ambiente natural do entorno geográfico dos habitantes da região. Essa história, que foi ouvida por mim, me guiou em minhas considerações sobre esses rios e guiará, pelas imaginações, as considerações de todos os que a ouvem, imprimindo um significado e um imaginário correspondente, relacionando simbolicamente sabedorias, afetividades e identidades que são importantes na valorização e preservação da nossa cultura.

Nas histórias contadas pelos habitantes da Ilha sobressaem os signos da forte conexão entre os seres humanos e o seu lugar de pertencimento para além da materialidade imediata, apontando para as formas próprias do uso da palavra, que vão desde a estética de sua linguagem até os sentidos variados de seus conteúdos simbólicos. Pela palavra, pela linguagem, o quilombo supera a limitação territorial da Ilha e comunica suas mensagens ao mundo.

Os quilombolas, esses estrangeiros ancestrais em relação à cultura de massa predominante em nossa vida agora, personificam, com relação às histórias que contam, verdadeiros mensageiros das raízes de nossa história material em consonância com a dimensão do imaginário. Eles são os distribuidores dos tesouros capazes de enriquecer a visão de mundo e alimentar de esperança a alma de todos os brasileiros.

O site www.historiasdailha.com tem fotos e vídeos de Walter Antunes, edição de textos e vídeos de Luama Socio, colaboração de Léo Daniel da Conceição Silva, e a participação de vários acadêmicos e profissionais da Universidade Estadual do Tocantins.

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