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A lenta e progressiva destruição da agricultura brasileira


Uma reflexão sobre a corrupção cultural e o abandono da sabedoria agroecológica tropical


Nas últimas décadas, a agricultura brasileira tem sido apresentada como um exemplo de sucesso mundial, impulsionada por ganhos de produtividade, exportações recordes e avanço tecnológico. No entanto, por trás dessa narrativa de progresso, esconde-se um processo silencioso, mas profundo, de destruição cultural, ecológica e civilizatória da agricultura brasileira. Esse processo não ocorre de forma abrupta, mas sim lenta e progressivamente, corroendo os fundamentos sustentáveis, os saberes ancestrais e a autonomia produtiva de milhões de agricultores.


No cerne desse fenômeno está o que se pode denominar de corrupção cultural da agricultura, uma distorção sistemática dos valores, práticas e conhecimentos que historicamente sustentaram os modos de cultivo adaptados ao território brasileiro. Esse tipo de corrupção não envolve suborno ou fraude institucional, mas uma erosão simbólica e técnica das bases que constituem a agricultura ecológica tropical, substituída por uma lógica exógena, voltada ao mercado global, moldada pela agroquímica, pela mecanização intensiva e pelo esvaziamento das relações ecológicas do campo.


O que se corrompe quando se perde a cultura do solo


Historicamente, a agricultura brasileira, antes da chamada “Revolução Verde”, foi construída por meio de práticas profundamente conectadas ao clima tropical, aos ciclos naturais, ao uso de sementes crioulas, à observação dos sinais da natureza e à convivência harmoniosa com a diversidade. Povos indígenas, comunidades quilombolas e agricultores tradicionais sempre entenderam que o solo é um organismo vivo e que plantar exige muito mais do que aplicar insumos: exige sabedoria ecológica, respeito à biodiversidade e visão de longo prazo.


Contudo, com o avanço do modelo agroindustrial, essa cosmovisão vem sendo substituída por uma visão mecanicista e reducionista, na qual o solo é tratado como substrato inerte, a planta como máquina produtiva e o agricultor como operador de pacotes tecnológicos pré-formatados. O saber, antes localizado e adaptado, é desqualificado em nome de uma ciência fragmentada, muitas vezes alheia ao contexto tropical. A fertilidade do solo é rebaixada a fórmulas químicas, e os processos naturais, como a ciclagem biológica de nutrientes, a sucessão ecológica ou a regeneração espontânea, são ignorados ou combatidos com venenos.


Uma cultura agrícola que virou mercado


O que se observa hoje é que a agricultura no Brasil, em vez de se consolidar como prática cultural ecológica, tornou-se reprodução de um modelo colonizador do campo, onde o sucesso é medido em sacas por hectare, não em resiliência ecológica ou qualidade da vida no território. As decisões sobre o que plantar, como manejar ou quando colher passaram a ser ditadas por empresas transnacionais, consultorias financeiras e algoritmos de mercado.


Essa dependência estrutural de insumos industriais, sementes patenteadas e maquinário pesado despersonaliza a agricultura e enfraquece a autonomia dos agricultores. Ao mesmo tempo, os saberes agroecológicos, a experimentação camponesa e os modelos tradicionais de manejo são tratados como obsoletos, folclóricos ou improdutivos, uma clara manifestação da corrupção cultural que impede a valorização da inteligência camponesa e da biodiversidade tropical.


Os efeitos desse modelo: solo doente, água escassa, gente sem terra


Essa destruição cultural reflete-se na paisagem. A substituição da diversidade por monoculturas extensivas causa erosão, compactação e esgotamento dos solos. O uso abusivo de fertilizantes solúveis e agrotóxicos desequilibra os ciclos naturais e contamina as águas. Os rios desaparecem. A fauna do solo morre. A atmosfera rural é poluída por névoas tóxicas e o clima local perde sua regulação.


Paralelamente, a concentração fundiária, a financeirização da terra e a tecnificação da produção tornam a agricultura excludente, desumana e volátil, expulsando famílias do campo, quebrando a agricultura familiar e empurrando o país para uma crise social silenciosa. A agricultura que deveria ser fator de soberania alimentar e resiliência ecológica, transforma-se em vetor de dependência externa e de destruição ambiental legalizada.


Caminhos para a regeneração


Romper com essa lenta destruição requer mais do que tecnologias alternativas: requer uma reconexão cultural e ética com o território, com os ciclos da natureza e com os saberes que foram silenciados. A regeneração da agricultura brasileira passa por reconhecer o valor da agricultura ecológica tropical, das práticas agroflorestais, dos sistemas agroextrativistas, dos bioinsumos naturais, da agroecologia praticada por povos do campo, das florestas e das águas.


É necessário inverter a lógica: o solo deve voltar a ser sujeito, não objeto. O agricultor deve voltar a ser protagonista, não executor. A cultura do campo deve ser respeitada como patrimônio vivo, não como entrave ao progresso.


Conclusão


A destruição da agricultura brasileira não é um acidente, mas um projeto que se alimenta da ruptura com nossas raízes. A corrupção cultural da agricultura é o principal obstáculo à construção de um futuro sustentável.


Recuperar o sentido ecológico e cultural da agricultura é uma urgência ética, política e civilizatória. Só haverá soberania, saúde e vida digna no Brasil quando o campo voltar a produzir alimento com respeito à terra, à água e à sabedoria dos que há séculos sabem cultivar sem destruir.




texto: Afonso Peche Filho

Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas www.iac.sp.gov.br  


foto: Walter Antunes

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