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  • Pássaros e orixás como roupas do invisível

    Pássaros, orixás e pessoas parecem figuras bordadas no universo pintado de Renê. Linhas retas e fluidas, lado a lado ou em quadros diferentes, são experimentadas nas estruturas das formas daquilo que para o artista é puro espírito ou pura cor, porque aqui espírito é cor. As figuras são como roupas do invisível. Descobre-se estampas e medidas geométricas disfarçadas nas penas dos pássaros, um coração costurado no peito de uma mulher e a força das divindades na rigidez de efígies hieráticas que, de acordo com o artista, foram vislumbradas através do carnaval. Xangô Nanã Oxum Renê explica: "tenho a necessidade de expressar a complexidade e a diversidade das várias correntes de manifestações religiosas que enriquecem o nosso país, tornando-o único. A matriz afro-brasileira me surgiu como necessidade de composição através da observação constante das fantasias ricamente confeccionadas nas escolas de samba do nosso carnaval. A variedade estilística me dá base inspiratória e não impõe limites para as possibilidades de criação". Eis que surge uma Yemanjá psicodélica e expressiva de um sofrimento atento: "o sincretismo brasileiro é uma de nossas preciosidades. Refletindo sobre a questão, busquei unificar a fé africana com o cristianismo, personificando-os em um único elemento. Assim, "Maria das dores de Yemanjá" é a mãe dos crucificados, açoitados e esquecidos. Derrama o teu leite, lágrimas de sangue, alimentando a esperança dos oprimidos, banhados pelas águas de teu infinito amor!", diz Renê. Maria das Dores de Yemanjá Maria das Dores de Yemanjá Mais abstratos e individualizados, ainda que universais, são os pássaros espirituais inventados por Renê: "além da paixão que tenho pelo pássaro em si, pela sua capacidade de observar a vida de pontos mais elevados com plena liberdade, ele representa também a minha necessidade de transcender limites. Busco no modo simples de vida destes seres incríveis a inspiração para minha vida prática. O pássaro tem em si a beleza da plumagem, do canto, da visão acima das paixões dos homens e não se envaidece". Da pintura, a poesia não se separa no mundo de Renê. A abordagem do sofrimento por meio de uma mulher emudecida e de uma criança abandonada passa pela delicadeza do olhar como um poema: "creio que este é um tema onde meus pés estão fincados no chão, observando, sentido e devolvendo através da arte os "sentimentos do mundo", como bem escreveu nosso Drumond ou " Drumundo". Procuro colocar o dedo na ferida deste corpo social que dói todos os dias com os mais variados sintomas de doenças sociais. A solução para uma doença não se dá através da negação, mas, antes de tudo, pelo enfrentamento sério, duro e pungente. Só assim avançaremos". Renê conta que seu trabalho tem a influência da longa história da arte. Menciona como inspirações principais os artistas da Bauhaus, a famosa escola de arte do modernismo alemão, e da " plêiade de 1922 aqui do Brasil, contudo, Paul Klee é o mestre que despertou a minha alma para o mais além. Não posso deixar de falar do Aldemir Martins, Picasso e dos muralistas mexicanos". O processo de criação de Renê acontece numa mistura de "pura intuição e experimentação de técnicas". Complementarmente, a visibilidade de sua arte se dá principalmente através do ciberespaço. Renê diz que nesse momento "as redes sociais são como chaves que libertam artistas dos grilhões do elitismo, promovendo a expansão de forma democrática. Na minha singela opinião, a arte urbana deu o primeiro passo de uma revolução que a as redes ampliaram de forma imensurável. Meu principal meio de venda e divulgação é através da rede. Hoje tenho clientes na Espanha, Portugal, França, Suíça e EUA por conta deste meio revolucionário". Richard Renê nasceu em 06 de março de 1990, distrito de Perus, São Paulo. Desde muito cedo demonstrava talento para as artes visuais, quando passava horas de sua infância reproduzindo desenhos animados que via na TV. Aos 22 anos, Renê iniciou um curso de design de interiores na Escola Técnica Estadual de Artes de São Paulo, quando descobriu-se como artista, participando de concursos de desenho livre promovidos pela escola, onde ganhou destaque. Autodidata, Influenciado pelas cores do grafitti efervescente da capital paulistana e artistas de vanguarda da primeira metade do século XX, Renê desenvolveu técnicas originais, mesclando materiais múltiplos afim de obter resultados visuais diversos para os diferentes temas abordados em seu trabalho. Renê vai da fantasia mais livre à crítica social mais angustiante, numa busca incessante para incluir a diversidade de emoções e sentimentos que movem a vida humana. Hoje, Renê segue com sua produção artística na cidade de Ourinhos, onde reside desde 2018. instagram Richard Renê

  • Helena Meirelles

    Dona Helena Meirelles sintetiza a magia que existe por Milagre em terras brasileiras. Por Milagre! Vive porque existe. Existe porque vive. Faz música porque é a vida. Faz música porque pulsa e quer. Não existe palco e lamentação. O palco e a lamentação são da vida. Mas a verdadeira vida é magia e música, Dona Helena sabe e diz. Por Milagre!

  • Uma ideia de espantalho

    O meu pai caminhava todas as noites mais de uma légua até chegar em nossa casa. Mesmo porque primeiro ele dava uma subidinha até o sítio do meu avô Victório para saudar sua mãezinha Cecília Maria de Jesus. Ele ia a ela pedir a sua bênção e, ao receber a bênção da mamãe, ele seguia seu trajeto apesar do cansaço, pois havia trabalhado o dia inteiro capinando com uma enxada em mãos, cortando os matagais que assoreavam a lavoura de arroz. E à pé meu pai seguia seu caminho, e muito feliz porque havia recebido naquela noite a bênção da mamãe, que para ele era uma coisa sagrada receber as bênçãos de uma mãe. E meu pai voltava para casa deslumbrado. Meu pai, que para acender o seu cigarro usava o isqueiro assim: um tubo com lã ou algodão, com uma tampinha. E ele trazia no bolso um pedaço de lima e uma pedrinha de cinco centímetros e a lima de uns sete centímetros. E a pedrinha batia na lima fazendo um barulhinho. E quando meu pai se abaixava para pular o fio da cerca de arame, a pedrinha batia no pedaço de lima, e era ali o sinal: papai estava chegando. Aí então descansava um pouquinho tomando o seu banho. Em seguida assentávamo-nos em volta de uma mesa para as orações e depois, a minha Aninha já com o prato de cada um em mãos... e era assim que vivíamos, minha mãe já nos dava o prato feito. No ano seguinte meu pai teve uma ideia. Veio cultivar um terreno que ficava ao lado direito do Carreador, bem ao lado de nossa casa, e depois de ter preparado o terreno, ele efetuou o plantio de grãos de arroz. Só que desta vez não chovia e os pássaros, com fome, e descobrindo os grãos nas covas, se puseram a ciscar com as patinhas para pegar com o bico os grãos e ingeri-los. Mas meu pai descobriu um espantalho e o colocou no meio da lavoura... e além desse detalhe nos colocou, eu e meu irmão Paulo, para que ficássemos de um lado para outro batendo as tampas de panela para espantar os pássaros até que viesse a chuva. E, depois que chovesse, meu pai já tinha experiência, e ele sabia que depois da chuva os pássaros não iriam mais invadir os grãos que se encontravam nas covas. Meu pai era experiente no ramo da lavoura! Odilia Fernandes Avelino é artista do sorrir, da palavra e do encontro, do coser e do cozer, das linhas e agulhas e das linhas e canetas, paulista brasileira, filha de índia e mineiro, também italiana de Cândia, Creta. fotos Walter Antunes

  • As Vozes do punk de Teresina

    Publicação de Aristides Oliveira e Eduardo Djow conta a história do punk em Teresina O livro Vozes do punk conta a história do movimento que atravessou a juventude brasileira a partir da década de 1980, apresentando suas dissidências e conexões, tendo como ponto de partida, a cidade de Teresina. Sua força motriz consistiu na rebeldia contra o sistema, expressa de forma geral em impressos alternativos como: fanzines, panfletos, cartazes, entre outros, além das estampas de bandas de rock nas camisetas, piercings e cabelos moicanos, entre outros signos de identificação da tribo urbana que tem nas guitarras elétricas, baixo e bateria, sua artilharia pesada. Os punks, em uma perspectiva histórica, representaram uma ruptura em relação à geração hippie e seu lema de "paz e amor", motivados pelo desejo de se libertarem das normas sociais e de viverem suas vidas de acordo com seus próprios termos. Eles rejeitaram a conformidade e a complacência, e abraçaram a atitude de confrontação e desafio. Essa postura contestadora e rebelde do punk rock teve um impacto significativo na cultura e na música, especialmente nas décadas seguintes, influenciando uma geração de jovens a questionar as normas estabelecidas e a buscar sua própria identidade e voz. A ideia de liberdade do "Faça você mesmo" (Do it Yourself) rompeu com paradigmas e propôs um estilo de vida diferente daquele propagado pela "sociedade do sucesso", que se baseia na busca pelo dinheiro e poder dentro do sistema capitalista. A descrença nas instituições sociais e políticas uniu parte da juventude brasileira e internacional, encontrando no som visceral do punk o componente anárquico exato dessa expressão inconformada. Inicialmente, o punk chegou ao Brasil em São Paulo, tendo como principais referências os grupos Ramones e Sex Pistols. Vale ressaltar que o punk brasileiro de forma ampla não é mera importação do movimento internacional, indo além da chamada assimilação cultural. Trata-se de um processo subjetivo, criativo e original que permeia a identidade cultural brasileira, cuja origem parte de uma apropriação crítica e transformadora das componentes da criação e no movimento punk, também da destruição de certezas e valores. Então, o punk brasileiro é expressão do “nosso jeito de ser”, em nossa língua, o que não ocorre comumente em diversos países europeus. Segundo Paul Friedlander em Rock and Roll – Uma História Social (2016, p.352): “o punk foi um estilo heterogêneo, compreendendo uma miscelânea complexa de ingredientes e orientações. Palavras eram vomitadas por vocalistas sem noções prévias de tom e melodia”. Neste sentido, Altaide Pedreira do Nascimento, o Chakal, importante protagonista do movimento punk em Teresina com a banda Obtus, postula: “Inventamos a banda pra gritar, xingar, meter o dedo na cara e dizer: você é um escroto e todo mundo sabe o que você faz!” O estilo punk é implosão e explosão de sentimentos, pulsão de morte, uma relação dinamitada pelo próprio sistema que o criou. Nesta obra “Vozes do punk”, organizada por Aristides Oliveira e Eduardo Djow, vislumbra-se toda a cena underground construída na tórrida Teresina. Através de entrevistas e profícuo material de época (jornais, revistas e panfletos), se adentraram nas memórias relatadas por seus participantes que vieram na esteira de um contexto histórico sombrio balizado pela ditadura militar. As memórias como se sabe, são dinâmicas e se relacionam intrinsecamente com a história do tempo presente, portanto, o avivamento dos anos de repressão em meio às ameaças autoritárias dos últimos anos são sentidos pelos artistas que fizeram toda a mágica acontecer e que mantêm de forma essencialista a chama da indignação acesa. Os depoimentos do livro foram realizados em clima informal de bate-papo e os leitores de alguma forma se sentem convidados a participar, ressignificando suas próprias memórias em relação ao tema e à época. As histórias relatam também os lugares onde o punk acontecia em Teresina como o Teatro do Boi e o bar Elis, a exemplo, que aparece em vários depoimentos. Outra recorrência é a da importância do Grupo de Estudos Anarquistas (GEA) que se propunha a debruçar sobre os conceitos principais do anarquismo, perceptível nas produções da época. A epopeia outsider começou com o grupo Grito Absurdo (1985-1988) que revelou não apenas uma preocupação política, mas também estética, inserindo a poesia de Fernando Pessoa, com inspiração direta nas aulas e pesquisas da professora Dorinha na UFPI, Universidade Federal do Piauí. Dentro da perspectiva interartes inerentes à época, este grupo mesclou o punk com a literatura, a dança e o teatro. Tal iniciativa não agradou a todos, mas realmente esta nunca foi a perspectiva dos punks, como afirma Eduardo Crispim da banda Obtus: “Não era música para agradar, e sim, para agredir”. Na esteira do grupo Grito Absurdo, outros surgiram, cada qual com sua especificidade, mas unidos na proposta anti-sistema: Obtus, Verme Noise, Fimose, Campo Minado, Resistência Libertária, Anarcóticos, entre outros. Em um primeiro momento do livro, surgem as vozes dissonantes de protagonistas dessa cena: Fábio Almeida de Carvalho, Jorge Oliveira, Eduardo Djow, Chakal, Fernando Castelo Branco, Bayaku, Zé Nildo, Eduardo Crispim, Makline, Vidal Neto, Jairo Mouzinho, Heitor Matos, Sid Blues, Fofão, Demétrio, entre outros. Posteriormente, o livro conta também com a participação de três grandes pesquisadoras, enriquecendo o debate sobre o punk. Em As Lutas têm canções, a pesquisadora e professora Paula Guerra, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), apresenta o itinerário em que se apresentou o punk na sua trajetória de vida e pesquisa. A professora ressalta também os alcances e desafios da inserção dessas culturas marginais juvenis nas universidades de forma geral, e especificamente, em Portugal. Em frequências sonoras do Rock, Olga Costa, jornalista cultural e com uma longa estrada no cenário da produção musical, em seu depoimento, conta sobre sua experiência com o punk rock e compartilha sua trajetória, uma verdadeira inspiração a todas e todos os amantes da música pesada em suas diferentes nuances. Para finalizar, temos a pesquisadora musical Maria Caram e seu depoimento intitulado A força da sonoridade feminina no cenário independente. em que nos apresenta questões relacionadas à mulher em um campo eminentemente masculino como o rock. Produtora de eventos na área musical e estudiosa da música feminina nacional e internacional, transita entre o indie, o eletrônico e o punk e nos revela sobre o duo musical com Olga Costa, denominado Motosserra. Foram muitas as vozes do punk que compuseram o cenário de Teresina, todas viscerais no som e na crítica, postulando contra toda a forma de poder e marca de gado no ser humano a fim de normalizá-lo. Vozes que alcançam o século XXI ainda como transgressoras. Entrevista de Patrícia com o professor Aristides Oliveira, um dos organizadores do livro. Aristides Oliveira e Eduardo Djow, organizadores do livro Vozes do Punk Patrícia: Aristides, conte-nos sobre a organização do livro Vozes dos Punk, como surgiu esta ideia? Aristides Oliveira Desde muito jovem, quando tinha 15 anos, comecei a frequentar shows de rock em Teresina (PI), principalmente os que rolavam no espaço Belas Artes. Quem me chamou para conhecer esse cenário foi o amigo Demetrios Galvão, que na época fazia parte do Grupo de Estudos Anarquistas (GEA) e transitava no circuito anarcopunk da cidade. Assim, fui conhecendo de perto várias bandas como a Obtus, Anarcoticos, Káfila, bem como vários grupos de heavy metal que me influenciaram a ser entusiasta da música underground e a valorizar o que essa turma fazia por aqui. Nunca me considerei punk ou ligado a algum movimento específico, mas era um ouvinte interessado e sempre que possível participava dos eventos. Fui conhecendo muita gente massa, o tempo foi passando e percebi que era importante não deixar essas memórias musicais se dispersarem. Juntei meu respeito pela música punk piauiense com o meu ofício de historiador e convidei Eduardo Djow para concretizar um projeto que reunisse essas experiências, já que ele também é um cara ativo, tanto como integrante de banda (Miséria), organizador de shows e espectador crítico há mais tempo que eu. Djow foi articulando os contatos com a galera da “velha guarda” e organizamos o quebra-cabeça histórico, mapeando narrativas do punk de 1988, quando surgiu a primeira banda do gênero em Teresina (Grito Absurdo) até os anos 2000, capturando outras vozes contemporâneas que enriquecem nosso underground. O mais curioso nesse processo de organização do livro foi perceber que alguns nomes importantes da cena se recusaram a participar do projeto, seja por preguiça de narrar ou por desinteresse, o que não afetou o andamento das costuras históricas. Chegamos a entrevistar uma referência do anarcopunk, que, não sabemos o motivo, nunca autorizou a publicação da entrevista, bem como outras pessoas que se entusiasmaram com o convite, prometeram conceder entrevista, mas “sumiram”, ignorando os pedidos de envio dos seus relatos. Vozes do Punk é um livro que conta uma história grande e bonita, mas que em alguns momentos nos deparamos com certas lacunas e brechas de tempo não preenchidas pelos próprios protagonistas, mas o resultado que tivemos foi surpreendente, graças à colaboração de várias gerações de músicos que fazem bastante barulho numa província que cochicha. Toda história “é esburacada”, como um tecido rasgado, corroído pelo tempo e a galera que escreveu esse livro fez um esforço incrível para iluminar as zonas obscuras, encobertas, que, por um triz, poderiam ter sido condenadas ao esquecimento. Patrícia: Nesta obra, vislumbra-se toda a cena underground construída em Teresina através de entrevistas. Você e Eduardo Djow se adentraram nas memórias relatadas por seus participantes que vieram na esteira de um contexto histórico sombrio balizado pela ditadura militar. Quais as permanências deste momento histórico na atualidade? Aristides Oliveira: Ainda somos assombrados pelo fantasma do autoritarismo de raiz integralista-militarista, que “dormiu” no inconsciente brasileiro e voltou mais fortalecido e brutal. Após viver quatro anos de neofascismo (2019-2022) e descobrir que boa parte de nossos parentes, amigos e amigas, aderiram ao pensamento de extrema-direita, sentindo-se autorizados a arrotar seu racismo, homofobia e intolerância contra o diverso, o punk tornou-se uma sonoridade fundamental nos dias que vivemos para socar no rosto imundo desses desgraçados e deixar bem claro que, mesmo com essas permanências extremistas querendo reocupar o espaço, estaremos firmes para meter o cacete nos fascistas cretinos que ousam solapar nossa democracia. O punk rock não é apenas um gênero musical, é um instrumento de luta contra a estupidez, o ódio e os espectros do horror que ameaçam nossa liberdade. Para mim, a importância do punk pode ser resumida nas palavras de Umberto Eco na obra Fascismo Eterno (2018) quando afirma que “o Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas, a cada dia, em cada lugar do mundo. Liberdade e libertação é uma tarefa que não acaba nunca. Que este seja o nosso mote: não esqueçam”. Patrícia: Como era ser punk em Teresina nos anos 1990? Qual a especificidade desse movimento em Teresina? Aristides Oliveira: Ser punk nessa época era andar de preto debaixo do Sol, enfrentar o conservadorismo dos pais e do provincianismo capenga da “Tristeresina”, ir para os shows a pé quando não tinha grana para pegar ônibus, se reunir nas praças e trocar referências musicais, combinar de ouvir som na casa dos amigos, participar dos protestos no Sete de Setembro ou nas reivindicações urbanas mais urgentes em qualquer época do ano, invadir o Palácio de Karnak, sede do governo, e enfrentar a polícia contra a péssima gestão excludente nas áreas de habitação e transporte, se reunir aos domingos para debater textos anarquistas e planejar ações de conscientização política, gritar no palco de uma cidade presa ao regionalismo “voz e violão”, ocupar a Vila Irmã Dulce para garantir terras para as pessoas que não tinham casa para viver com dignidade, manter contato com bandas e coletivos de outros estados e países, fortalecendo um intercâmbio para se atualizar do que estava rolando além das nossas fronteiras, participar de encontros anarcopunks pelo Brasil e trazer punks de todo canto para compartilhar suas experiências com a galera daqui. Tivemos o Grupo de Estudos Anarquistas (GEA), um movimento forte que mostrou ao mundo que punk não é apenas música, mas pesquisa, leitura, formação política e engajamento e luta contra as injustiças sociais. Patrícia: Como colaborar para a produção impressa deste livro? Aristides Oliveira: A ajuda é fundamental. Estamos fazendo uma campanha de pré-venda, arrecadando 40 reais para quem mora no Piauí e 55 reais de outros estados (porque tem o frete né?). As pessoas podem fazer um pix (017.166.503-13) e enviar o comprovante pelo meu zap (86-998345393). Pronto! Somamos até o momento 40% do valor que precisamos para rodar o livro na gráfica. Com os apoios essa história vai circular. Grito Absurdo, a primeira banda de punk rock de Teresina Referência FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll-uma História Social. Tradução de A. Costa. 3a.ed. Rio de Janeiro, Record, 2004. imagens Arquivo pessoal de Aristides Oliveira Acervo Demetrios, Dante Galvão Grito Absurdo – Acervo Jorjão. Patrícia Marcondes de Barros Doutora e Mestre em História (UNESP). Pesquisadora e professora nas áreas de História e Literatura, com estudos relacionados à contracultura brasileira. Publicou "Panis et Circenses": a ideia de nacionalidade no Movimento Tropicalista (EDUEL, 2000) e organizou as seguintes obras: O Sol da Liberdade de autoria de Luiz Carlos Maciel (Vieira & Lent, 2014) e Transas da contracultura brasileira (Editora Passagens, 2020). Contato Patrícia: email facebook

  • A Importância do Outono

    Com o avanço do conhecimento em agricultura tropical o outono passa a ser estratégico para as atividades de boas práticas agrícolas. No Hemisfério Sul, o outono inicia no dia 20 de março e termina no dia 20 de junho. É um período climático caracterizado pela diminuição das chuvas torrenciais, por mudanças bruscas de temperatura, pela diminuição da umidade do ar, pelas noites mais longas que os dias, e por fim pela maravilhosa beleza cênica causada pelo por do sol e por mudanças na coloração das folhas das árvores. Ocorre também, a maioria das colheitas agrícolas de grãos como a soja e o milho, de frutas como o caqui, a melancia e tangerinas. No outono se planta adubos verdes e as culturas de inverno. E assim a estação é a transição de uma agricultura de verão para uma agricultura de inverno. O outono é o período recomendado para iniciar o "plantio direto". Sistema tecnológico considerado como uma das maiores inovações da agricultura nos últimos cinquenta anos. Com chuvas brandas é possível realizar, se necessário, a calagem associada com uma mobilização de sistematização do solo. Assim, recomenda-se um último preparo, mobilizando o solo com a finalidade de incorporar o corretivo e corrigir "cicatrizes de ocupação" como é o caso de eliminar sulcos de erosão, velhos carreadores ou "caminhos" operacionais. A sistematização de outono prepara o solo para a instalação da cultura de inverno que vai propiciar o início de uma cobertura vegetal com a qualidade tão necessária e característica no plantio direto. Após a colheita da cultura de inverno vem o manejo da palhada e se dá o início da implantação do sistema com a semeadura direta da cultura de verão. Como as condições climáticas do outono são muito favoráveis é possível alcançar também, altos padrões de qualidade nas operações de adequação do perfil cultural do solo para receber a cobertura vegetal de forma definitiva. O uso de práticas conservacionistas, durante o outono, é recomendável para "readequação hidrológica" do terreno em áreas de pastagens degradadas. É necessário restabelecer no solo as condições naturais de interceptar, infiltrar, captar, conduzir e dissipar as águas das chuvas, além, de proteger a superfície do impacto direto das gotas. Ao longo dos anos, a ocupação e uso das terras com pastagens nos moldes do manejo tradicional provocam diminuições significativas na velocidade de infiltração e na capacidade de armazenamento de água. Com chuvas torrenciais do verão, o escorrimento superficial aumenta a cada ano, provocando estragos como a erosão, assoreamentos e poluição de cursos d'água. A degradação do solo torna o ambiente do pasto muito vulnerável às ações da água e do sol. Como a reforma exige uma forte mobilização para correção dos problemas, as operações fragilizam ainda mais o solo deixando-o muito suscetível a erosão. Nestas condições, o outono torna-se o período ideal para a implantação de práticas mecânicas para aumentar a infiltração e a captação de água, como é o caso do terraceamento e das caixas de acumulação. É o período ideal para construção de canais de condução e dissipação das águas excedentes, bem como da semeadura do capim que ainda tem umidade suficiente para germinar e cobrir adequadamente o solo. Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas www.iac.sp.gov.br

  • Metade Cara, Metade Máscara: um livro indígena para a transformação da consciência brasileira

    Todos devem ler Metade Cara, Metade Máscara, obra seminal de Eliane Potiguara, porque em primeiro lugar está aí reunida num volume relativamente conciso, uma compilação exemplar de uma série de variantes importantes da condição da pessoa indígena na contemporaneidade e, em segundo lugar, porque através do estatuto literário a obra carrega o poder de abrir os olhos da maioria brasileira atrasada quanto à necessidade de corresponder à formação de uma consciência cultural à altura dos valores dos povos originários que deveriam, nesse ponto histórico, ser também os valores do povo brasileiro. O poder dessa literatura liga-se sobretudo à sua função humanizadora, como ensinou Antônio Cândido em seu famoso texto O direito à literatura, aparecendo na construção estética de Eliane Potiguara através de incomum intensidade emocional. Uma intensidade possível porque vivida na carne e no espírito da própria escritora em todas as suas nuances e comunicada ao leitor estupefacto que, assim como todo brasileiro, quase sempre desconhece tudo sobre as condições de vida das pessoas indígenas. Trata-se de um livro que faz chorar, assim como talvez chorou o leitor da negra Carolina Maria de Jesus lendo Quarto de despejo. É bom que um livro nos faça chorar. É sinal inequívoco de que estamos aprendendo a perceber alguma coisa de muito importante sobre nós mesmos. Como quando lemos: "Vi um indiozinho escorrendo pelo bueiro. A metade de seu corpo superior debruçava-se sobre o meio-fio da rua e a outra parte jazia cansada, escorrendo pelo esgoto urbano" (p.102). Uma enorme vitalidade dessa figura, objeto-livro, contrasta com o fundo da atmosfera da necropolítica contextual. A exuberância da vida da voz de Eliane Potiguara é captada pelo leitor através de intenso movimento por entre hibridismos formais, narrativas de viagens físicas, simbólicas e literárias: "Aprendi com minha avó indígena, com Salvador Dali e Paulo Freire a reconstruir uma imagem de nós mesmos, desconstruir imposições e a reconstruir nosso discurso" (p.105). Irreverente e livre, essa voz canta, dança, viaja, conversa, pensa e sente, explicitando a correspondência característica da estética cultural indígena entre Beleza e Sabedoria. À barbárie do colonizador, que circum-navega o globo para subjugar, explorar, dizimar gente, bicho, floresta e terra, opõe-se aqui a civilidade verdadeira de uma indígena que anda pelo mundo conversando com povos de todos os continentes em busca de soluções políticas para o sofrimento e a miséria distribuídos calculadamente pelo sistema imperialista como saldo do falso progresso civilizatório moderno aos povos originários de todas as partes do planeta. "Cunhataí sai pelas matas, pelos céus, pelos rochedos, pelas montanhas, pelos rios e pelos lagos buscando suas raízes fragmentadas e fragilizadas pelo colonizador de todos os tempos. Viaja pelo espaço e vai percebendo, como em um filme, as histórias de outras mulheres, de outros guerreiros, de crianças, de velhos e de velhas ou viúvos(as). Ela vai testemunhando a destruição das terras, a poluição dos rios, o saque das riquezas minerais" (p.76). É assim que Eliane Potiguara vai contando, em primeira pessoa, sua luta pessoal e coletiva ao mesmo tempo, entremeando a narrativa com explicações, citações, conceituações e relatórios de ações políticas. Tudo marcado pela denúncia da enorme violência que permeia a existência indígena e, ao mesmo tempo, por um tom de confiança na construção dos diálogos em forma de tramas de encontros ao redor do globo: "Trezentos milhões de povos indígenas no mundo inteiro estão em estado de alerta na defesa de sua identidade, participando de fóruns nacionais, internacionais... (p.106). Dessa forma a escritora exemplifica o indígena mostrando a si mesma em sua letra, trazendo à tona a elaboração de sua própria biografia. Descreve o que vê e expressa o que sente frente ao que vê. Conta histórias indígenas que ouviu ao longo de sua vida. Cria poesia com todo esse material. Seus poemas são como sínteses expressivas ao final dos capítulos. Exerce o lirismo amoroso. Contempla, nomeando, inúmeros povos e nomes de personalidades indígenas. "Esse sofrer me pegou pelo pé, mas pude dar um nó nisso tudo quando pisei nas terras de meus avós e compreendi sua história oprimida e a história opressora do colonizador" (p. 98). "Bonito é florir no meio dos ensinamentos impostos pelo poder. Bonito é florir no meio do ódio, da inveja, da mentira ou do lixo da sociedade. Bonito é sorrir ou amar quando uma cachoeira de lágrimas nos cobre a alma! Bonito é poder dizer sim e avançar. Bonito é construir e abrir as portas a partir do nada. Bonito é renascer todos os dias. Um futuro digno espera os povos indígenas de todo o mundo" (p.87). É preciso acrescentar que um aspecto fundamental de Metade Cara, Metade Máscara é seu caráter militante feminista de contrapeso à hegemonia cultural machista. Isso se faz na obra pela afirmação da tese da identidade indígena em associação ao arquétipo feminino universal. Aqui se apresenta a conexão com o sagrado feminino como tomada de consciência de alcance político. À medida que o domínio próprio do arquétipo da mãe-terra, dos povos originários, da mulher e de todas as qualidades simbólicas do feminino detectam a interiorização do inimigo pelo processo de colonização para além do plano externo, o combate desde esse plano interno é campo privilegiado da mulher guerreira, por ser mulher e por ser indígena. Por esse viés Eliane Potiguara ensina que a mulher luta em seu campo próprio quando luta a causa dos povos originários. "Podemos dizer que a libertação do povo indígena passa radicalmente pela cultura, pela espiritualidade e pela cosmovisão das mulheres" (p. 46). "E é com a mulher que o homem aprende. É com a mãe-terra, é com o ventre vulcânico revolucionário, guerreiro, combativo que trará a transformação do ser humano contra a exploração do homem pelo homem e, por conseguinte, a transformação dos sistemas políticos, sociais e econômicos" (p. 107). É pela perspectiva da transformação que Metade Cara, Metade Máscara deve ser lido pelo povo brasileiro, a começar por todos os jovens do Ensino Médio, aos quais deve-se garantir o acesso às obras da literatura indígena. Inclui-se nisso a renovação da própria literatura brasileira pela palavra indígena, a qual extrapola as lógicas estilísticas históricas de gêneros e linguagens e inaugura necessários horizontes mentais em meio à complexidade delirante da cultura abstrata capitalística em que vivemos. Eliane Potiguara, nascida no ano de 1950, é considerada a primeira escritora indígena brasileira e tem vários livros publicados. Metade Cara, Metade Máscara foi lançado em 2004 pela editora fundada pela própria autora, Grumin, e é vendido exclusivamente através do site: www.elianepotiguara.org.br Agradecimentos a Léo Daniel da Conceição Silva, Michelle Duarte, Walter Antunes, Manoel Felipe Alves dos Santos, Érika Rodrigues, Sinalva Ferreira e a todos os participantes do Círculo Literário de CiberLeitura, Projeto de Extensão do curso de Letras da Universidade Estadual do Tocantins-Unitins, em especial aos que se reuniram para conversar sobre Metade Cara, Metade Máscara, de Eliane Potiguara, no dia 22 de Abril de 2023. Referências: CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura. Vários Escritos. 5. Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. 3. Ed. Rio de Janeiro, RJ: Grumin, 2018. FOTO: Walter Antunes

  • A fotografia e a descoberta da sutil arte da contemplação

    Alex Montel revela o seu olhar e a sua fotografia na conversa com Walter Antunes: descobertas, transformações, perspectivas, natureza, invisibilidades, geografias da exclusão, humanidades, expectativas, realidades, esperanças, presentes e futuros Walter Antunes: Por que esse tema das aves? Alex Montel: O tema aves nasceu da necessidade de um foco em algo específico em que eu pudesse canalizar meus estudos com a fotografia. Eu possuo uma máquina semi-profissional desde 2018, mas não estudava fotografia, não conhecia a fundo o aparelho e a fotografia não evoluía. Em 2020 eu comprei um livro que abordava a fotografia, fiz a inscrição em um curso e decidi que teria que evoluir e sair do modo automático. Logo após a chegada do livro veio o período de pandemia, eu tive que ficar em casa. Sobrou muito tempo ocioso e fui estudando, do quintal de casa eu comecei a observar os pássaros nos quintais dos vizinhos. As aves vinham pousar em mangueiras, açaizeiros, limoeiros, mamoeiros e comecei a focar nelas. No início as aves eram somente o que eu tinha para fotografar, mas à medida que eu ia observando e as fotografando foi desenvolvendo em mim um gosto por conhecer as espécies, fotografava uma desconhecida por mim e enviava para um amigo biólogo identificar para mim, este amigo, Hugo Buratti, contribuiu muito para este gosto meu, conhecer os nomes e as espécies fez-me aproximar mais dos pássaros. O tempo foi decorrendo em 2020 e quando me dei conta, havia fotografado quatorze espécies somente do quintal de casa e observando os pássaros nas árvores dos quintais dos vizinhos. Não havia mais nenhuma espécie nova para fotografar de onde eu estava, então resolvi ir para a estrada procurar novas espécies que pousavam nas árvores próximas às rodovias pois eu via muitas enquanto eu pedalava, ciclismo foi outra atividade que me atraiu em 2020 durante a pandemia. Na primeira vez que eu fui fotografar na estrada, percebi que não era mais somente a melhora das minhas fotos que eu procurava, era o gosto por encontrar novas aves para fotografar que me movia, foi nesta hora que deu aquele estalo e percebi o gosto pela fotografia de aves tinha verdadeiramente se instalado em mim. Walter Antunes: Qual contraponto e reflexão você faz entre esse trabalho com os pássaros e aves e a humanidade, sobretudo destacando o período das fotos feitas na pandemia? Alex Montel: A primeira vez que eu resolvi postar fotos em uma rede social que não fosse o whatsapp, foi no meu facebook. Neste dia eu nomeei meu post como “Surtos na Quarentena”, ali para mim era um surto, uma fuga de tudo que ocorria naquele momento e então eu refleti que eu era um ser preso, observando pássaros livres. Não havia correntes ou gaiolas que me privassem de uma liberdade como alguns costumam fazer com pássaros, mas havia uma doença desconhecida que amedrontava a todos e eu não saía de casa por isso. Então, lá estava eu preso em uma casa, sentado em um gramado de um lote com medidas de doze por trinta metros, totalmente murado, preso no meu mundo em que julgava ser livre, no entanto livres eram os pássaros que voavam todos os dias para vários lugares desconhecidos por mim. Mas cabe destacar também que foi essa prisão durante a pandemia que permitiu que eu pudesse estudar a fotografia e enxergar os pássaros que rodeavam minha casa, eles estavam sempre por lá, eu que nunca via e este momento pandêmico permitiu isso a mim. Walter Antunes: Estas fotos são feitas em quais lugares? Alex Montel: Comecei pelo quintal de casa, depois fui para as rodovias próximas a Araguatins, pois via muitos pássaros enquanto pedalava pelas manhãs. Após despertar o gosto por fotografar aves eu sempre tenho andado com a máquina do lado e hoje sempre que posso faço fotos de aves. Tenho registros em Araguatins, Pará, Maranhão, Piauí e Brasília. Walter Antunes: Você verifica com as fotos uma resistência ou um processo de afunilamento e falta de espaço para a natureza? Alex Montel: Penso em resistência das aves, o espaço sempre foi delas, a urbanização não as impediu de viver, pelo menos não as que fotografo em Araguatins, cidade que fica na transição entre cerrado e floresta amazônica. Por aqui encontro aves com resistência pois se adaptaram às mudanças impostas pelo homem e alimentam-se pelos quintais. Até mesmo pelas estradas encontramos aves que modificaram seus costumes alimentares para seguirem vivendo, como exemplo eu cito o Gavião Carcará (Caracara Plancus), facilmente encontrado pela região e alimentando-se de animais que morrem atropelados por carros, alguns vivem à margem das rodovias como se aguardassem novas mortes. Walter Antunes: As fotos se dão num processo longo para cada uma? Qual o tempo da espera e da procura? Alex Montel: No início do processo, todos os dias eu me sentava no quintal pela manhã antes das sete horas e ficava observando as aves pousarem nas árvores dos quintais vizinhos, depois de um tempo isso foi reduzindo pois já não encontrava mais novas espécies e foi a partir daí que resolvi ir para as estradas por onde eu pedalava. Nas estradas eu costumo observar os costumes de movimentos das aves e quando encontro um padrão de horário, costumo ir atrás para fotografar. Para o ano de 2022 eu fiz boas fotos em Conceição do Araguaia, no mês de Janeiro eu registrei dezesseis novas espécies para minha coleção, as fotos foram feitas na margem do majestoso Rio Araguaia que banha a cidade. Depois eu tive problemas de ordem pessoal que me fizeram afastar da fotografia, terminei por direcionar todas as minhas energias para um outro campo da vida e esqueci por um período a fotografia, em Junho eu consegui boas fotos em uma viagem até Canaã dos Carajás e vim retornar novamente em meados do segundo semestre de 2022. Não há um padrão para espera nem para o momento, tem acontecido quando posso, quando aparece tempo ou oportunidade. O fato é que no momento, voltar a fotografar é sinal de que a vida está retornando aos eixos. Walter Antunes: Qual paralelo você faz entre as aves belas e raras com o ser humano desta região norte, raro e quase invisível na visão imposta pela mídia das capitais do sudeste do país? Alex Montel: Esse ser humano é mistura de todos os brasileiros. Por certo, há sim uma semelhança entre as invisibilidades das aves e do homem nortista. As aves que voam pelas cidades ou pelas margens das rodovias, principais focos meus, são invisíveis aos moradores da cidade devido sua correria do dia-a-dia, nas estradas então, mais ainda. A vida na cidade mesmo que pequena, nos apequena enquanto ser humano capaz de observar a natureza. Há quem plante jardins na cidade que produzam flores, mas que são incapazes de observar que nestas flores aparecem beija-flores que ao alimentarem-se em seus quintais, fazem a polinização necessária para que suas plantas produzam flores e frutos, caso sejam frutíferas. Homens e mulheres na cidade ajudando passarinhos que retribuem e não são vistos. Sanhaços de quase todas as cores comem mamões e são espantados porque os furam, vistos como pragas, mas querem somente comer em um ambiente que não é mais tão seu. Sabiás dissipam caroços de Açaí que podem germinar em outros cantos e gerar novas árvores para alimentar mais pessoas e também aves. Mas nada disso é observado e as aves são deixadas de lado. Eu vejo invisibilidade nisso tudo, aves invisíveis ao povo, assim como o povo do norte é invisível para os grandes centros e para a mídia nacional. Mas há para mim um grande ponto a refletir. O ser humano da região norte, região na qual vivo e me incluo como vivente desta grande região que é invisibilizado, é o mesmo que não enxerga os pássaros, nossas aves, a natureza que fotografo. Não é a mídia das grandes capitais e centros que tornam nossas aves invisíveis, é exatamente o povo que aqui vive e cada vez que posto uma foto em minhas redes sociais é exatamente para que sejam vistas, descobertas, não é por curtidas. Walter Antunes: Como você enxerga a arte fotográfica nesse momento com tanta gente com dispositivos para captação entre câmeras e celulares? Alex Montel: Há fotos e Fotos, com F maiúsculo mesmo. A captura de imagem está mais acessível do que nunca, difícil encontrar quem não carregue um celular na mão pronto a registrar tudo que possa acontecer a qualquer momento e de qualquer forma. A grande questão para mim é o objetivo na captura destas imagens. Guardar o que? Guardar para quem? Não vejo foco pessoal no foco da câmera. Sem foco e objetivo, a captura é banal. É comum ver pessoas, jovens em grande maioria, fazendo inúmeras fotos que nunca serão postadas nas redes, reveladas, vistas por mais alguém, por simplesmente julgarem que a tal da “pose” não ficou legal e por isso não merecem ser vistas. Não é a foto pelo momento, é a foto pelo ego pessoal. A grande facilidade, terminou por acabar com originalidade e a fotografia ficou banal. Walter Antunes: As suas fotos expressam beleza, equilíbrio, revelação de um universo cada vez mais desconhecido e distante para a auto-proclamada "humanidade civilizada". Como vê as mentes e o futuro dessa humanidade? Alex Montel: Difícil falar em futuro dessa humanidade, o que posso falar é de desejos. Tenho uma filha de cinco anos, desejo o melhor para ela e desejo que eu com meus trinta e sete anos possa acompanhar ela por muito tempo e a ensinar a viver neste caminho. Os passarinhos que fotografo, costumo mostrar para ela e gostaria muito que ela pudesse observar assim como eu um dia e se encantar com eles assim como eu me encanto. Sei que a vida molda as pessoas cada um da sua forma, mas eu buscarei a ensinar, ensinarei também quem mais eu tiver oportunidades. Há em mim um desejo enorme que o futuro seja muito bom para todos, que essa “Humanidade Civilizada” ou que se diz assim e ao mesmo tempo destrói a natureza, as aves, as matas em busca de modernização e urbanização, pare e reflita, que possa enxergar assim como eu enxerguei as aves, que o futuro não é esse, o futuro é o da coexistência, do uso adequado de tudo que a natureza nos proporciona. Se o futuro for de uma nova adaptação e não de destruição, a sociedade estará melhor servida, a vida será mais branda e menos sofrida, e se a sociedade não sofre, a Alice, a minha Alice como costumo dizer, terá um futuro melhor também e isso me traria paz. Walter Antunes: Você tem trabalhado outros temas de interesse além deste com as aves e pássaros? Alex Montel: Não tenho trabalhado outros temas especificamente, quando tenho oportunidades eu fotografo o nascer ou o pôr-do-sol, mas nada que seja constante. E tenho servido como fotógrafo de eventos das escolas em que trabalho, mas sempre deixei claro que fotografar pessoas nunca me encanta como as aves e pássaros. Fotografar pássaros e aves trouxe para mim uma sensação de tranquilidade e um lazer que eu buscava há muito tempo. Sou professor desde 2008, queria algo que eu pudesse fazer como lazer, distração e que me encantasse ao fazer, a fotografia de passarinhos me trouxe. Quando me proponho a fazer é como se tudo parasse para aquele momento, o fotografar, a seleção das melhores fotos para edição, a descoberta de uma nova espécie para a minha coleção, tudo me atrai e me distrai. Eu sigo dizendo que não busco likes, a troca de informações com outras pessoas que têm o mesmo gosto que eu, me encanta mais, publico para que vejam, que todos vejam, não pelos likes. Ouvir de algumas pessoas que têm conhecido os passarinhos pelo meu instagram me alegra, saber que alguém tem obtido conhecimento comigo através das postagens, vale mais do que likes. O desejo de aprender a fotografar melhor em 2020 levou-me a um caminho que eu não esperava, mas que tenho valorizado demais caminhar por ele, pois tenho adquirido conhecimento e conhecido pessoas que enriquecem meu capital cultural como diz o amigo professor Leandro Ferreira. No início da conversa eu citei o amigo Hugo Buratti, ele indicou a mim o sábio Túlio Dornas, biólogo especialista em aves. Com Túlio aprendi demais, sigo aprendendo até hoje, essa troca de experiências é muito boa, enriqueceu-me demais. É pouco tempo com aves, apenas desde 2020, mas tenho aprendido muito. A atividade que começou com outro foco, hoje conta com mais de cem espécies diferentes fotografadas por mim. A lista pode ser conferida em minha página no site da wikiaves. Nestes três anos de fotografia com pássaros, gostaria de destacar dois momentos que enriqueceram-me profundamente e que também alegraram bastante. O primeiro foi a volta em torno da Ilha de São Vicente, território quilombola que fica em frente a cidade de Araguatins, junto com mais dois amigos, contornamos toda a ilha em 15 de Outubro de 2021, fizemos o percurso em motor "rabeta", viagem demorada, neste dia eu fotografei quinze espécies, naquele momento, nove inéditas até então para mim e ainda observei mais nove espécies que não consegui registro, um momento riquíssimo. O segundo momento foi em dezembro de 2022 quando visitei uma região de mata fechada com o amigo Cristóvão Pereira, até então eu nunca havia ido fotografar em matas, fizemos o registro de doze espécies, onze novas para mim. Região belíssima, pássaros muito interessantes encontramos por lá. Estes dois momentos foram marcantes para mim. Sigo em busca de mais momentos assim, sigo em busca de mais fotos. O desejo em 2023 é registrar pelo menos cem novas espécies e que entre elas esteja o Gavião Real (Harpia Harpija), para como diz um amigo, zerar a vida. Alex Montel por Alex Montel Alex Montel, nasceu em 1986 em Conceição do Araguaia, Pará, filho de Seu Adiel, motorista aposentado e Dona Rosália, conhecida por Rosa, também aposentada e pai de Alice, “minha Alice”. Cara fechada e rabugento como dizem alguns amigos, mas de um coração enorme e sonhador. Um sonhador que ainda sonha como a criança que nasceu em cidade pequena, que viveu por um tempo da infância na zona rural, que morou por cidades pequenas e interioranas durante toda a infância. Formado em Letras pela Universidade Estadual do Pará - UEPA em 2008 e mestre pela UNIFESSPA em 2019. Uma pessoa que gosta de ouvir e contar histórias, mais ouvir que contar, certamente e que vai aprendendo mais a cada vez que ouve. E claro, alguém que buscou nos pássaros um foco para aprender a fotografar, mas que encontrou neles um novo foco para a vida e uma forma de apreciar, valorizar e expor através das redes sociais o quanto a natureza é bela e encantadora a partir do momento que nos dispomos a observar ela. Alex Montel no wikiaves www.wikiaves.com.br/midias.php?t=u&u=45129

  • FÁTIMA BARROS !!

    Sem palavras, que não são necessárias. Fátima Barros. Apenas e sempre: Fátima Barros !!

  • Uma Inconveniente Preocupação

    Já faz um bom tempo que vários pesquisadores e técnicos vêm alertando que a própria estrutura do sistema produtivo da agricultura brasileira tem associado sua existência à superexploração dos recursos do solo e da água. É comum ver propriedades agrícolas, grandes ou pequenas, praticando uma agricultura primitiva que de forma desequilibrada promove uma crescente afetação do equilíbrio produtivo nos diferentes ecossistemas brasileiros. Da mesma forma, outros autores enfatizam que a oferta de crédito e uso indiscriminado de tecnologia tem levado muitos agricultores a tomar decisões erradas de investimentos, aumentando os riscos de insolvência e perda da terra. A queda da capacidade produtiva do solo e a escassez de água são lentas, produtos de impactos ambientais cumulativos como é o caso da compactação do solo e o assoreamento de represas e lagos. O aumento da produtividade de lavouras e a rentabilidade de mercado em determinadas condições pode ocultar a degradação lenta e progressiva das terras. Em áreas irrigadas, a perda da capacidade produtiva pode ser ainda mais rápida e severa. O alto investimento tecnológico com manejo inadequado condena o irrigante a uma situação crítica que em muitos casos o excluí da atividade. Soma-se a esta dramática situação, o passivo ambiental gerado e um alarmante processo de destruição contínua aumentando a vulnerabilidade ambiental às chuvas tropicais e à radiação solar intensa. Áreas degradadas desqualificam propriedades e causam impactos irreversíveis aos cursos d’água. Assim, começa a decadência do espaço rural nos municípios. Com política de desenvolvimento agrícola pífia o município degrada seu território no atacado e faz gestão ambiental no varejo. Afonso Peche Filho Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas www.iac.sp.gov.br

  • A Terra Prometida

    Um pedaço no Paraíso rebatizado de América pelo homem europeu. Mas as belezas são acorrentadas pelo homem europeu, dos dois lados do Atlântico: pele preta, pele índia reunidas no subsolo do Paraíso, agora rebatizado de América. Apropriação do sangue, suor, almas. Desapropriação da Verdade e da Beleza A palavra rebatizada não tem nome definitivo: Floresta, Paraíso, Pau-Brasil, pau, Brasil, deserto. Latifúndio, cães latem fundo, donos da mentira na Terra Paraíso rebatizada, expropriada com a justiça que é de Roma, na mentira do sonho americano impresso pelo homem europeu no seu almanaque de mentiras via Gutenberg. Qual o pedaço seu no Paraíso rebatizado de América pelo homem europeu? Poderia estar na rede lendo Machado de Assis depois de nadar no Araguaia e colher pela manhã as frutas das árvores. Poderia? Mas existe o maior deserto do mundo a ser criado na Terra Paraíso Brasil: a profecia-promessa do homem europeu jurada sob a cruz da profanação dos povos do mundo no dia primeiro da primeira cruzada comercial precisa e será cumprida. Existe São Raimundo Nonato guardando o rebanho, orando, guardando o rebanho, orando. Qual o pedaço seu no Paraíso rebatizado de América? Na praça sob a imagem de Padre Josimo, Cacheado sonha. Sonha e trabalha. Josimo observa, Cacheado sonha. Sonha e sorri. E o Anjo finalmente pergunta: Qual o pedaço seu no Paraíso? F O T O Raimundo Nonato Silva Oliveira, o Cacheado na Praça Padre Josimo NOTAS SOBRE O BRASIL Cacheado: Raimundo Nonato Silva Oliveira foi assassinado aos 46 anos em Araguatins, Tocantins, cidade do Bico do Papagaio em 13 de Dezembro de 2022, por três homens encapuzados enquanto dormia com sua esposa. Padre Josimo foi assassinado aos 33 anos em Imperatriz, Maranhão no dia 10 de Maio de 1986 enquanto subia as escadas para o escritório da Comissão Pastoral da Terra – CPT. LINKS SOBRE O BRASIL Cacheado: Raimundo Nonato Silva Oliveira Líder do MST é morto a tiros enquanto dormia com namorada em Tocantins https://odia.ig.com.br/brasil/2022/12/6539656-lider-do-mst-e-morto-a-tiros-enquanto-dormia-com-namorada-em-tocantins.html Quem era o líder do MST morto por grupo encapuzado enquanto dormia no Tocantins https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2022/12/13/homem-morto-a-tiros-enquanto-dormia-com-namorada-era-lider-do-mst-no-tocantins-diz-pastoral-da-terra.ghtml Líder do MST no Tocantins é assassinado a tiros enquanto dormia https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2022/12/13/interna_nacional,1433154/lider-do-mst-no-tocantins-e-assassinado-a-tiros-enquanto-dormia.shtml Parentes e amigos se despedem de líder do MST morto a tiros enquanto dormia em Araguatins https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2022/12/14/parentes-e-amigos-se-despedem-de-lider-do-mst-morto-a-tiros-enquanto-dormia-em-araguatins.ghtml Tocantins: Líder do MST é assassinado enquanto dormia com namorada https://revistaforum.com.br/brasil/norte/2022/12/13/tocantins-lider-do-mst-assassinado-enquanto-dormia-com-namorada-128631.html Na cidade de Araguatins, líder do MST no Tocantins é morto a tiros enquanto dormia https://cultura.uol.com.br/noticias/54342_na-cidade-de-araguatins-lider-do-mst-no-tocantins-e-morto-a-tiros-enquanto-dormia.html Comitê DDH: Nota de pesar sobre assassinato de Raimundo Nonato Silva Oliveira, liderança do MST https://www.global.org.br/blog/comite-ddh-nota-de-pesar-sobre-assassinato-de-raimundo-nonato-silva-oliveira-lideranca-do-mst/ Líder do MST em Tocantins é morto a tiros por grupo encapuzado enquanto dormia https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/ultima-hora/pais/lider-do-mst-em-tocantins-e-morto-a-tiros-por-grupo-encapuzado-enquanto-dormia-1.3311851 Padre Josimo PADRE JOSIMO É ASSASSINADO A TIROS http://memorialdademocracia.com.br/card/padre-josimo-e-assassinado-a-tiros 35 anos do assassinato do Padre Josimo: mártir da luta pela terra https://www.ihu.unisinos.br/categorias/609142-35-anos-do-assassinato-do-padre-josimo-martir-da-luta-pela-terra Há 34 anos, padre Josimo era assassinado por sua luta em defesa da terra https://www.brasildefato.com.br/2020/05/10/ha-34-anos-padre-josimo-era-assassinado-por-sua-luta-em-defesa-da-terra Padre Josimo Tavares: 27 anos de martírio http://secretariat.synod.va/content/sinodoamazonico/pt/testemunhos-da-amazonia/padre-josimo-tavares--27-anos-de-martirio.html Memorial Padre Josimo Morais Tavares https://imperatriz.ma.gov.br/blog/nossa-cidade/memorial-padre-josimo-morais-tavares.html Josimo Morais Tavares https://mst.org.br/2006/07/21/josimo-morais-tavares/ Igreja homenageia Padre Josimo Tavares https://imperatriz.ma.gov.br/blog/nossa-memoria/igreja-homenageia-padre-josimo-tavares.html Padre Josimo Moraes Tavares E A Atuação Da Comissão Pastoral Da Terra (Cpt) Nos Conflitos Agrários Do Araguaia-Tocantins https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tde/2317

  • A Câmera e O Canhão

    A Câmera e O Canhão livro de Alexsandro de Sousa e Silva O livro discute uma série de encontros e desencontros entre os regimes políticos de Cuba e do continente africano, mediados pela câmera cinematográfica e as guerras pré e pós-independência em África. O repertório de imagens, sons e debates foi pesquisado, virtual e presencialmente, nos dois lados do Oceano Atlântico, e constitui uma série de fontes documentais inéditas na historiografia. Trata-se de uma outra forma de compreender o Atlântico Negro, descortinando uma história de revisões dos paradigmas estéticos, políticos e étnico-culturais. O trabalho analisa um conjunto de películas, entre ficções, documentários e cinejornais, que retrataram os vínculos do regime político de Fidel Castro com movimentos de independência e governos africanos entre 1960 e 1991, bem como os aspectos políticos, econômicos e culturais da África. Instituições cubanas de produção fílmica, como o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC) e os Estúdios Cinematográficos e de Televisão das Forças Armadas Revolucionárias (ECITVFAR), destacaram-se pelo empenho em construir imagens que legitimassem a presença da ilha naquele continente. Entre os temas privilegiados nessa produção, a questão militar foi um princípio norteador da maior parte dos relatos audiovisuais, uma vez que os uniformizados de Cuba auxiliaram diversos grupos políticos africanos em guerras de emancipação e conflitos armados com países vizinhos. Nesse grande campo "anti-imperialista" e transatlântico, algumas tensões marcaram os diferentes contextos, sejam de ordem internacional, como as expectativas e desilusões com os aliados estrangeiros, sejam nacionais, como as complexas relações raciais na ilha e as representações dos soldados mortos em combate no continente africano. O livro A Câmera e O Canhão de Alexsandro de Sousa e Silva é uma publicação da Acervus Editora e esta´disponível para download. link para download Sobre o Autor Alexsandro de Sousa e Silva é Mestre (2015) e Doutor (2020) em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor de Educação Superior na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Unidade Passos. Pesquisador das relações entre cinema e história na América Latina e África. Contato com o autor: e-mail: alexsandro.dses@gmail.com

  • A Arte Persistente de Transformar

    Fábio Takahashi visita com Luama Socio sua trajetória de trabalhos e ações artísticas transformadoras num mundo em constante mutação Luama Socio: Me parece que a comunicação é concebida por você como uma espécie de lugar que precisa ser constantemente cuidado. Um espaço especial, com a finalidade de proporcionar condições para a emergência de uma cultura, ou de várias culturas. A materialidade desse espaço é constituída de arte e representação. Fotografia, cinema, vídeo, música, texto, constituem a base para a emergência da representação de corpos que são "normalmente" politicamente silenciados. Nesse sentido a realização da arte engajada em uma política de conscientização de direitos aparece como uma espécie de extensão do espaço público reivindicado aos modos de Judith Butler que diz: "o que vemos quando os corpos se reúnem em assembleia nas ruas, praças ou em outros locais públicos é o exercício – que se pode chamar de performativo – do direito de aparecer, uma demanda corporal por um conjunto de vidas mais vivíveis" (p. 29 de "Corpos em aliança e a política das ruas"). A arte, mediada pelo artista, é a voz multiplicada dessa vida que clama por justiça, essa que, segundo a mesma Butler, deve ser enunciada na forma de uma incessante interrogação filosófica por essa mesma justiça: "A questão do reconhecimento é importante porque se dizemos acreditar que todos os sujeitos humanos merecem igual reconhecimento, presumimos que todos os sujeitos humanos são igualmente reconhecíveis. Mas e se o campo altamente regulado da aparência não admite todo mundo, demarcando zonas onde se espera que muitos não apareçam ou sejam legalmente proibidos de fazê-lo?" (p. 39). Você pode citar alguns trabalhos seus, explicando sobre qual tipo de Justiça está-se perguntando em cada um deles? Em "interiores :diversidades", uma exposição fotográfica itinerante concebida por você, me parece que se interroga sobre a justiça da reivindicação de uma vida comum e igualitária para pessoas de gêneros diversos. Gostaríamos que você falasse mais desse e de outros trabalhos seus sob esse ângulo. Fábio Takahashi: Ao longo da história, me parece que a arte esteve por diversas vezes ao lado das minorias que clamam por igualdade para simplesmente viverem suas vidas de forma digna e plena. Penso que é inerente ao artista e de uma curadoria, além de tantas outras urgências, a ideia de reverberação de causas, seja de um indivíduo, grupo, uma nação ou até de toda uma geração. A inspiração, a hora e a vez da arte pressupõe ecoar um lugar de consciência coletiva e a visão desse lugar já é parte do caminho percorrido. Em “interiores: diversidades”, que teve início em 2008, em parceria com o fotógrafo Walter Antunes, uma frase, um olhar ou sorriso dos retratados se transforma em mensagem universal da causa LGBTQIA+. Essa mensagem, na época, ao contrário do grito e marcha de visibilidade das paradas mundo afora, é o da delicadeza e até do silêncio ensurdecedor de bocas ainda amordaçadas pelo sistema e seus modelos ilusórios. Hoje, quatorze anos depois da primeira exposição, “interiores: diversidades”, ainda é atual pela sutileza; é como se cada retratado colocasse sua história em uma garrafa e a lançasse ao mar, rumo ao desconhecido, para que quem a encontrasse se comovesse, se tornando um agente disseminador do fato e causa em si. A proposta do trabalho não era a do choque, polêmica e imediatismo. É bem possível que a exposição fotográfica, que também agrega o livro, tenha sido uma das primeiras, no mundo, a evidenciar os anseios, angústias e sonhos desse universo resumido em sigla. Eu e Walter concebemos as imagens a partir do cotidiano de pessoas comuns, que representariam sua causa extraordinária, aquém ou além do arco-íris, libertas ou ainda inconscientes da perspectiva da justiça e igualdade. Acredito que a arte enquadrada em fotos tenha despertado no público a sensação de que todo o mar cabe em uma única gota de água salgada e vice-versa. Já perdi a conta de quantas exposições foram realizadas e não me recordo do número de cidades e espaços que acolheram as cerca de quarenta fotos. Sim!, até o número de fotos me falha a memória. O público direto e indireto, também é incontável. Esse é o fato que mais me alegra porque artistas que admiro, inclusive, não sabem o quantitativo da sua obra. Em entrevista antiga, Caetano Veloso revelou que não sabia quantos discos já tinha gravado e quantas canções compusera. Da mesma forma, Fernanda Montenegro disse que há muito tempo já se esqueceu de quantos palcos pisou. Luama Socio: Existe uma aparente contradição interessante no fato de que, ao passo que a visão da teoria queer parece "provocar e perturbar as formas convencionais de pensar e de conhecer" (p. 51, "Um corpo estranho", Guacira Lopes Louro), do ponto de vista estético, as imagens escolhidas para a representação queer que geralmente vemos na mídia, parecem se esforçar por se alinharem justamente a símbolos massificados e massificadores, de modo tal que a resposta à luta por direitos parece ser dada mais em nível de cooptação econômica e mercadológica, uma espécie de estímulo ao consumo de produtos segmentados do que, de fato, através de modificações na estrutura social e política. Sabe-se que "a identidade de grupos diversos se constitui no conflito interposto ao desrespeito, à denegação e à privação de direitos e que a ação social mediadora torna-se necessária em função dos fenômenos negativos que devem ser superados na afirmação positiva do reconhecimento" (SENA e GUSMAN). Então de que forma conciliar a ação de valor social sem cair em novos estereótipos justamente quando se tenta dissolver os antigos e assim garantir a autonomia na produção de representatividade simbólica quando se faz uma arte militante? Do ponto de vista especificamente estético, como são realizadas as escolhas dos símbolos das imagens, cenas, histórias e personagens dos produtos culturais desenvolvidos sob o seu conceito? O engajamento da arte em causas sociais facilita ou dificulta as coisas, em nível de liberdade criativa, para o artista? Fábio Takahashi: A arte engajada à causa LGBTQIA+ presente nos vários produtos como a websérie Transparências, Mostra de Cinema Interiores e exposição fotográfica “interiores: diversidades”, é pensada de forma coletiva e articulada com diversas redes e indivíduos, tendo um compromisso com a diversidade dentro da diversidade, a leques que se abrem a outros leques, em relação aos comportamentos sexuais, novos arranjos afetivos e de expressões de gênero que podem, ou não, se atrelar a afetividades e a orientações sexual. Uma pessoa com identidade de gênero oposta ao seu sexo biológico (transexual), pode ser heterossexual, bi ou homo. Uma transexual com identidade de gênero feminina, pode se relacionar afetivamente com outra mulher transexual e sexualmente com um homem cis, ou um homem trans. A sigla LGBTQIA+ não é estática, em menos de uma década foi acrescida de contornos e multiplicidades, espelhando bifurcações e trifurcações do humano. Entre o binarismo do masculino e feminino existem outras cores, assim como no meio da heterossexualidade e homossexualidade é evidente a manifestação de outros temperos para o desejo e ligações de afeto. A representatividade simbólica da diversidade sexual e de gênero pode ser análoga à imagem do arco-íris, que vemos no céu, na natureza, no qual o entre o amarelo e o laranja não existe uma linha divisória acentuada. Existem nuances de definição sexual e afetiva que também são cores, que também tem sua existência marcada. No meio do azul e do verde é possível encontrar uma tonalidade alternativa viva. As escolhas dos símbolos das imagens, cenas, histórias e personagens dos produtos culturais desenvolvidos estão – também - sob a o olhar transcendente de artistas como o fotógrafo Walter Antunes, o dramaturgo Dib Carneiro Neto, cineastas como André da Costa Pinto e Lufe Steffen. Juntos, no coletivo, no ajuntamento de ideias, valores e experiências tentamos nos conectar com um tempo e um lugar em movimento, em transformação. Para mim, a arte engajada não consegue ser solitária e olhar somente para cima ou para dentro. Existe uma parábola milenar chinesa sobre dois amigos inseparáveis, que andaram meio mundo à procura da felicidade, o primeiro um pequeno dragão e o segundo um urso panda. O pequeno dragão pergunta ao seu companheiro: o que é mais importante, a jornada ou destino? O panda responde: a companhia. É interessante observar fenômenos culturais diversos, como na moda, que outrora era uma pirâmide onde a elite produzia para elite e a base, a plebe, copiava o topo. Os artistas da moda revolucionaram e inverteram essa pirâmide, na qual a inspiração da alta-costura também vem da rua e sobe às passarelas. A culinária, que hoje é vista como arte, também teve sua reinvenção ao evidenciar o simples como refinado. Podemos observar que a alta gastronomia já não tem mais reinvenção e se apoia na afetividade de pratos do povo, que são clássicos e eternos. Acredito que a arte, tão vasta e profunda, também é norteadora para novas formas do pensar valores, do viver em grupo e interagir com as diferenças, para além das questões LGBTQIA+. Reprogramar um sistema de pensamento baseado em divisões e muros está mais próximo do que imaginamos e pode ser mais fácil e rápido do que se prega nesse mesmo sistema. Luama Socio: Sabe-se que houve mudanças (ou avanços) duramente conquistadas graças ao trabalho de movimento de grupos específicos nos temas de visibilidade LGBTQIA+ ao longo dos últimos 30 anos. Uma matéria do site Nexo traz a seguinte relação de avanços: em 1985 houve a despatologização do "homossexualismo"; em 1987 passou a ser enfatizada a compreensão da importância da adoção do termo "orientação" sexual ao invés de "opção" sexual na citada expressão linguística; a partir de 1997 os movimentos ganharam visibilidade através das "paradas gays"; a partir de 2013 passou a ser permitido o casamento civil entre homossexuais e a conversão de uniões estáveis homoafetivas em casamentos civis; a autorização para redesignação sexual de fenótipo masculino para feminino ocorre em 2002 e de feminino para masculino em 2010; em 2018 passa a ser permitida a mudança de nome no registro civil; a criminalização da homofobia e transfobia vem em 2019 e em 2020 o fim da proibição para doar sangue. A matéria destaca, no entanto, que as conquistas aconteceram sempre "a partir de decisões do Poder Judiciário ou Executivo, e não de novas legislações propostas e aprovadas pelo Congresso — reflexo de um país conservador, que ainda registra recordes de agressões contra pessoas LGBTI+". A partir disso, quais são os desafios que o momento atual coloca para a população LGBTQIA+? Em que a arte e a comunicação contribuem para os novos desafios? Fábio Takahashi: O tempo é rei e transforma as velhas formas do viver, como diz a canção de Gilberto Gil. Em 2005 na novela América, de Glória Peres, torcemos pelo primeiro beijo gay em horário nobre, cogitado para o último capítulo. A história termina sem o beijo. Foi decepcionante! Dez anos depois, em 2015, Gilberto Braga, coloca no primeiro capítulo da novela Babilônia, o beijo lésbico de Fernanda Montenegro e Nathália Timberg. Foi um escândalo! E foi notório o avanço! Uma década se passou entre o beijo gay censurado dos jovens, mas na segunda novela, essa simples demonstração de afeto apareceu logo na estreia. O avanço foi rápido? Sim. Os progressos são definitivos? Não. E esse é o maior desafio: manter e ampliar a ascenção para a igualdade. Destaco que o conceito de igualdade não se trata de privilégios para LGBTQIA+. Por ironia do destino, as atrizes do beijo lésbico representavam um casal já na casa dos setenta anos, ou seja, a ideia do “antes tarde do que nunca”, a prerrogativa do esperar “o tempo certo”, que pode chegar tarde demais. Chavões à parte, nos últimos dez anos, artistas e a arte em geral invadiu os telões do cinema, as telinhas dos celulares, a música e os palcos. Já podemos, sim, falar em visibilidade diversa, porém a avalanche é pelo represamento. A arte frente a uma causa tem uma contribuição mais larga e profunda que as leis da terra. Isso porque a arte é uma espécie de verdade acima do chão que pisamos, é etérea. É uma verdade quase sempre atrasada. Já as leis, o legislativo, oscilam entre o erro e o acerto, o tempo e o vento a favor, ou contra elas. Luama Socio: Os produtos culturais realizados por você abordam questões diferentes entre si: o universo LGBTQIA+ na exposição fotográfica "Interiores Diversidades" e mais especificamente a transexualidade nos vídeos, e depois no filme, "Transparências", as mulheres portadoras de HIV na exposição fotográfica "Superpositivas", dentre outras ações. Que ligação entre esses trabalhos você pode destacar? Quais outras ações culturais você projetou e coordenou e também as que ainda coordena, além das produções que envolvem diretamente as habilidades artísticas (sabemos que você coordenou a Parada Gay de Rio Preto durante alguns anos, que realizou um festival de cinema em Rio Preto também durante alguns anos, e que coordenou um projeto de arte-educação junto a adolescentes da Fundação CASA em várias cidades do interior do estado de São Paulo)? Como você vê o papel do GADA, a ONG em que você trabalha, nisso tudo? Fábio Takahashi: Como é bom recordar anos de história, destacando-se nesse tempo, o convívio e o partilhar de emoções com tantas pessoas. Como foi bom protagonizar tanta gente silenciada. Destaco que “interiores: diversidades” e a Mostra Interiores de Cinema de Rio Preto foram idealizados e executados a partir de 2008. A Parada LGBTQIA+ teve sua primeira edição na cidade em 2000. Esses trabalhos têm em comum a urgência na apresentação para a comunidade, pois representam a voz sufocada por décadas ou séculos, diante de um acervo de produção cultural predominantemente heteronormativo, já mofado. Os comportamentos afetivos e sexuais, e até as apresentações estéticas em desacordo ao binarismo de gênero, eram e são coadjuvantes nas artes. Só agora, há pouco tempo, podemos falar em protagonismo LGBTQIA+ na cultura, só recentemente podemos ter modelos físicos e de comportamento positivos ou plenos, sobretudo diversos. Apresentar e inserir o tema da diversidade sexual e de gênero em exposição fotográfica, livro, filme e afins, já estava atrasado. Era preciso correr contra o tempo para corrigir o próprio tempo perdido. É provável que esses produtos foram tão bem aceitos pelo público, em editais, prêmios, parcerias governamentais e da sociedade civil porque numa época anterior à explosão das redes sociais e o mundo virtual, a tela grande de cinema, as livrarias e o formato livro, as exposições e a rua eram palco de manifestações. Ainda que em meio a uma dicotomia de construção versus desconstrução, sabe-se que a sociedade se organiza entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Existem teses de que a imprensa e a internet com as redes sociais representariam o Quarto Poder. As ONGs, os coletivos diversos e os indivíduos não-governamentais, representariam - assim como os artistas - um outro pilar de poder. Acredito que pensar, apoiar e incrementar essa estrutura de poder da arte e das organizações da sociedade civil é repensar um caminho mais sábio, igualitário e democrático. O papel do GADA e outra instituições que são centros de referência LGBTQIA+ sempre foi a de “casa de mãe”, o refúgio e o lugar de organização do coletivo para se projetar anseios por meio de políticas públicas. Para muitas ações foi, e ainda é, necessário um CNPJ para representar um projeto e a maioria dos agrupamentos, sobretudo os virtuais, não possuem essa legalidade. A obtenção de recursos públicos e privados para os feitos no universo do audiovisual já comentados, só foi possível pela representatividade do GADA em diversas instâncias de poder e sua trajetória de mais de vinte anos no enfrentamento das desigualdades. Implantar a arte e cultura como uma forma de pensar a comunicação da instituição com a comunidade em geral foi um divisor de águas, terras, tempo e espaço. Link Transparências e Palavras Que Somos Nós TRANSPARÊNCIAS Bio Fábio Takahashi é jornalista, publicitário e produtor cultural. Há vinte anos coordena projetos sociais de promoção dos direitos humanos e saúde integral, por meio da arte e cultura, no GADA, uma ONG de São José do Rio Preto, interior de São Paulo. Instagram: @fabiotakahashibr Fábio Takahashi Texto: Katawixi Imagens: Walter Antunes, frames de divulgação Transparências, fotos de exposições de Walter Antunes/Fábio Takahashi Referências A trajetória e as conquistas do movimento LGBTI+ brasileiro. nexojornal BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia; tradução Fernanda Siqueira Miguens; – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. SENA, Ercio; GUSMAN, Juliana Magalhães e Ribeiro. Apropriações do discurso neoliberal das lutas por reconhecimento. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 151-166, abr./jul. 2020 Será que podemos, mesmo, comemorar a visibilidade LGBTQIA+? www.mundorh.com.br Site GADA

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