Walter Antunes

mai 7

Téo Azevedo

Sabia do nome, não sabia das histórias.

Não sabia da lenda.

Foi assim que conheci o Téo Azevedo em 2002 numa noite paulistana em um restaurante nos Campos Elíseos: ele estava terminando de jantar, eu chegava com amigos para prosseguir a conversa interrompida no estabelecimento anterior - uma mistura de café, lanchonete, boteco - frequentado por nós quase todos os dias, onde como já era costume, a casa acabara de nos mostrar a tabela com o horário de funcionamento e pedir para que fôssemos embora mais uma vez.

Quando fomos apresentados, ele como o Téo Azevedo, eu o jovem produtor cheio de fôlego para furar as muralhas da burocracia musical estagnada, Téo apertou a minha mão de um jeito que se manteria o mesmo por vários anos em nossos encontros. Um jeito desconfiado e escorregadio que contrastava com a conversa franca e direta. Só muito tempo depois fui entender que aquele era o verdadeiro aperto de mão do calango, já por natureza escorregadio e arisco, aperfeiçoado pelo trânsito nos caminhos irregulares de um Brasil inteiro. Notei quando Téo abriu o porta-malas do carro para me entregar alguns cds e cordéis, que as caixas de discos dividiam espaço com dezenas de dicionários.

Dois meses depois desse primeiro encontro, tínhamos uma apresentação para o Téo na feira do livro em São José do Rio Preto. Durante as conversas tive que convencer o Téo de que Barretos não ficava no caminho do show, ele queria passar por lá para tomar um café na casa de Gedeão da Viola a quem tinha confiado seu sobrinho Rodrigo Azevedo para fértil período de aprimoramento das artes da viola.

No camarim antes da apresentação, disse ao Téo que não precisava me agradecer no palco. Não adiantou. Ele não só agradeceu como o fez cantando numa quadra de repente. Foi nessa noite que fui entender a história do "Cálix Bento" e o Téo.

Aos poucos fui descobrindo histórias e mais histórias sobre o Téo que pareciam impossíveis de terem sido vividas pela mesma pessoa numa única vida. A cada história descoberta eu me envergonhava pelo tamanho da minha ignorância.

Ainda criança, com nove anos, Téo começou a cantar calangos em feiras no sertão mineiro como atração para a venda de um misterioso elixir, terminava sempre a apresentação cantando com uma cobra enrolada ao pescoço. Ele e seu parceiro pernambucano Antônio Salvino, o dono do elixir, viajaram por centenas de cidades por vários anos, até que um acidente com o caminhão em que estavam colocou fim à parceria.

Téo foi sozinho aos 16 anos para Belo Horizonte, lá trabalhou de diversas formas para sobreviver, virou boxeador tri-campeão mineiro de boxe, cantava seus repentes e vendia os seus cordéis nas feiras livres, antes de conseguir gravar os primeiros discos impressos em materiais pouco duráveis, aqueles que permitiam tocar a música três, quatro vezes no máximo. Foi em 1965 que gravou "Deus Te Salve, Casa Santa" (Cálix Bento) alterando a melodia da tradicional música e acrescentando mais três estrofes.

Em Belo Horizonte além de se apresentar tocando os seus repentes em praças, circos e casas de shows, produziu discos de outros artistas, criou um estilo novo para dançar gafieira “o puladinho”, fundou uma escola de samba, foi aclamado como o melhor compositor mineiro pela crônica local.

No início dos anos 1970 Téo já estava morando em São Paulo, havia se mudado em 1969, se apresentando em praças e palcos em que conseguisse algum espaço. Dessa época é o convívio com Guaiatã de Coqueiro e muitos outros artistas que procuravam caminhos para a sua arte na capital paulista: Maxado Nordestino, Deodato Santeiro, Coriolano Sérgio, Venâncio, Alceu Valença, Sebastião Marinho.

Numa noite foi chamado para substituir um grupo de samba-rock numa badalada casa de shows, Téo estava receoso da sua música tão brasileira do sertão não ser bem recebida pelo público “moderno e exigente” da casa, ainda assim foi convencido a se apresentar. Era para ser uma única noite, ficou dez anos consecutivos tocando praticamente todos os dias no lugar.

Em 1974 Téo Azevedo lançou o álbum “Grito Selvagem”, um dos primeiros discos que mistura música popular brasileira com soul, rock, samba-rock. Um disco que foi redescoberto e passou a ser cultuado pelos colecionadores de raridades nos anos 2000.

Com “Ternos pingos da saudade”, música em parceria com o poeta Cândido Canela, Téo venceu de forma absoluta, em 1978, o Primeiro Festival de Música Sertaneja realizado pela Rádio Record de São Paulo, então a líder absoluta da chamada música sertaneja-caipira. As evidências mostram que a vitória do Téo contrariou o "mainstream" daquele momento no mundo sertanejo, que torcia para que o vitorioso no festival fosse escolhido dentro do padrão de “dupla sertaneja” que a indústria tentava impor. No mesmo ano Téo lançou o clássico álbum “Brasil, Terra da Gente”.

Um dia encontrei o Téo por acaso no Anhangabaú, ele estava saindo de uma livraria e carregava uma pesada sacola. Paramos para tomar café, eu curioso, perguntei o que era aquilo, ele estendeu as mãos e me deu o pacote dizendo: “me falaram que meu nome está aí”. Abri e vi: era uma gigantesca edição do Dicionário Cravo Albim de música popular brasileira. Páginas e páginas tentando contar sobre o Téo. Naquela edição somente havia para Luiz Gonzaga e Tom Jobim tantas páginas dedicadas a um único artista como aquelas páginas que falavam do Téo.

Naquela altura eu já sabia de algumas histórias.

Não sabia da lenda.

Não sabia que Téo é a pessoa que mais produziu discos no Brasil: mais de três mil álbuns de diversos artistas.

Não sabia que Téo tinha escrito o Dicionário Catrumano.

Não sabia que Téo foi o primeiro a aparecer falando, cantando, escrevendo sobre o pequi e a magia entrelaçada da vida do sertanejo com a ecologia e o equilíbrio do planeta.

Não sabia da parceria de Téo com Luiz Gonzaga nos anos 1980, Luiz que um dia viu numa feira no sertão mineiro o menino Téo cantar na década de 1950.

Não sabia que Téo tinha escrito e publicado dezenas de livros sobre plantas medicinais e cultura popular.

Não sabia que Téo tinha milhares de composições suas gravadas, que ele é um dos três compositores mais gravados no país.

Não sabia que Téo foi preso aos 17 anos por se apresentar como repentista em Belo Horizonte e que só foi liberado após apresentar e cantar sua defesa em forma de repente dizendo “que é um crime prender um cantador”.

Não sabia que o Téo nasceu no dois de julho, a data em que os baianos finalmente expulsaram o exército português e que muitos consideram o verdadeiro dia da independência do Brasil, feita pelas mãos do povo.

Não sabia que Téo tinha milhares de cordéis escritos por ele. Não sabia que esses cordéis eram estudados em universidades americanas, europeias e até no Japão.

Não sabia que o Téo saiu da escola depois de completar a primeira série e foi trabalhar engraxando sapatos, carregando malas, capinando hortas, cantando nas feiras, para poder ajudar a sua mãe Dona Clemência e seus irmãos, após a morte de seu pai por febre tifóide no interior de São Paulo.

Não sabia dos encontros e parcerias do Téo com Tião Carreiro, Antunes Filho, Zé Coco do Riachão, Rubens Avelino, Charlie Musselwhite, Jackson Antunes - este último que quando criança viu o Téo já adulto cantando numa feira, o que o inspirou ainda mais em ser um artista.

Não sabia da misteriosa e inusitada festa particular com Téo tocando com Bobby Keys, os Rolling Stones e Bob Dylan em 1998.

Não sabia das caminhadas de Téo com Carlos Drummond de Andrade pela praia em Copacabana no Rio de Janeiro, para conversarem sobre parcerias, poesia e a vida.

Uma outra noite encontrei o Téo por acaso e ele me deu alguns cds que tinha acabado de produzir e lançar. Outros que ele estava relançando. Havia entre os discos o “Blues Matuto”, então Téo me contou do seu encontro com o Blues Etílicos. O convite inicial foi para uma breve participação em uma única música num show da banda. Mas os músicos e o público não deixaram Téo sair mais do palco e a pequena participação virou quase quatro horas de desafios e improvisos e uma parceria nova.

No fim da noite Téo se lembrando de outros discos me levou até o carro, porta-malas aberto, me entregou outros cds. Ali estavam outros inúmeros dicionários, novos e usados. Desta vez perguntei o motivo daquilo. Então Téo me contou: ele vivia comprando dicionários em São Paulo e toda vez que viajava para o norte de Minas Gerais (Alto Belo, Montes Claros), ele levava aqueles dicionários, entrava nas cidades pelo caminho e deixava um dicionário na escola pública ou na prefeitura de cada cidade, fazia isso há mais de vinte anos, me explicou que muitas cidades não tinham visto nunca um livro. Era uma noite de inverno paulistano de 2005.

Quando São Paulo completou 450 anos, Téo produziu por conta própria um album-síntese da metrópole contando a história da cidade de modo poético, misturando repente, samba, rock, embolada, música caipira, jazz, hip hop, com dezenas de músicos convidados, antes que toda essa mistura virasse moda.

Estava o Moisés da Rocha, o Téo e eu tomando café no início da noite numa lanchonete frequentada por músicos, compositores, artistas, num entrocamento que anteriormente ficava no centro de vários estúdios e gravadoras - os estúdios e gravadoras todos fecharam, mas as pessoas continuavam a frequentar o lugar para saber das produções dos outros artistas. Téo falou de Guimarães Rosa, ele que já tinha feito vários trabalhos sobre a obra do autor de “Grande Sertão: Veredas”, aguardava ansioso, após anos de espera, pela autorização da família do escritor para o lançamento do álbum ao qual tinha se dedicado tanto e tão carinhosamente.

Na casa do Téo em São Paulo numa tarde para organizar alguns arquivos, eu vi sobre a mesa uma porção de partituras alinhadas, perguntei do que tratava e mais uma vez tive uma lição e descoberta: as partituras eram uma parte dos cem chorinhos que Téo vinha compondo e que foram lançados em seguida com diversos músicos e intérpretes convidados sob o conceito de “Choro do Cerrado”.

Foi por essa época que notei que o aperto de mão do Téo havia mudado comigo. Não era mais aquele toque fugidio, era agora um aperto de confiança. A conversa continuava franca e direta.

Um dia o Téo apareceu com uma caixa e uma carta, era o comunicado da sua vitória no Grammy que ele estava recebendo pelo seu disco: “Salve Gonzagão, 100 anos”, dentro da caixa estava o troféu do Grammy.

Eu já sabia de algumas histórias.

Não sabia da lenda.

Não sabia que Téo era filho do mitológico “Tiófo, tocador de um braço só” - lavrador, aboiador, ferreiro, tropeiro, folião de reis, repentista e cantador que perdeu um braço durante um trágico acidente de caçada.

Finalmente a autorização um dia chegou e o Téo pôde lançar “Mineirada Roseana”, uma grande homenagem a Guimarães Rosa.

Encontrei o Téo e ele estava com um braço enfaixado, perguntei o que tinha acontecido e ele me contou sobre a noite anterior voltando para casa nos Campos Elíseos. Três caras o abordaram, ele conseguiu - talvez se lembrando dos tempos de boxeador - se livrar dos três e fazer o facão que um deles segurava cair no bueiro, foi quando apareceu às suas costas uma mulher com um pedaço de madeira que o nocauteou.

O paraíso dos Campos Elíseos grego-paulistano já não era mais tão paraíso nem feito de muita honradez.

Eu não sabia ainda sobre o Téo e o Terno de Folia de Reis de Alto Belo.

Durante a pandemia sem a possibilidade de trânsito e estando no norte de Minas Gerais, Téo me contou por telefone que estava gravando uma dúzia de discos novos por lá e que tinha aproveitado o tempo com artistas e parceiros locais para filmar o longa metragem “U ômi qui casô cua mula”, baseado num cordel seu, publicado em 1981. O filme logo apareceu em cartaz.

E o Téo completou 80 anos, compondo e gravando novas músicas. Escrevendo e contando novas histórias e novos livros. Colocando tudo na mala e saindo pelo Brasil de praça em praça, espalhando essas músicas suas, essas histórias de tantos artistas e tantos brasis, sempre o Téo independente de tudo como o país o ensinou a ser.

E tudo parece sempre uma sequência do menino cantador que caiu da boleia do caminhão, do menino cantador que caiu no mundo: a mesma feira na mesma praça para o artista brasileiro vender o seu elixir.

Então eu já sabia mais das histórias.

E um pouco da lenda.

Num telefonema para preparativos de uma sessão de fotos para livro e disco, eu disse para o Téo que ele não precisava levar muita coisa para fazermos as fotos: apenas duas camisas diferentes, o chapéu e a viola. Ele disse que já tinha separado a viola e que ia levar uma “rozini”, eu entendi ”rosinha”. Disse para o Téo que viola rosinha não ia combinar não. Téo começou a repetir do outro lado da ligação “é rozini”, “é rozini”, eu dizia para ele “rosinha não”. Até que Téo falou alto “é rozini seu moço”. Então eu escutei. Então eu entendi.

Ligações de longa distância, almanaques ligeiros, transmissões digitais, nunca foram, não são e nunca serão a melhor forma de conversar com as pessoas, de descobrir histórias e tentar aprender sobre as lendas, sobretudo as lendas vivas.

fotos: Walter Antunes

imagens da galeria: acervos diversos sobre as histórias do Téo Azevedo