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Lula, Os Moinhos, O Vento



Eu classifico São Paulo assim: O Palacio é a sala de visita.

A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim.

E a favela é o quintal onde jogam os lixos.

(...)

Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo.

Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas.

Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da America do Sul está enferma.

Com as suas úlceras: As favelas.


(Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, 1960)


Lula foi até a Favela do Moinho na cidade de São Paulo, na quinta-feira, 26 de junho. Um grande momento histórico repleto de revelações sobre o Brasil e sobre o futuro do país.



As revelações


Se num encontro com milhares de pessoas, alguém que está prestes a completar 80 anos é a pessoa com mais presença de espírito, mais jovial e com mais energia, revela-se um país doente que tem um imenso problema em sua essência para continuar tentando existir.


Toda a comitiva de ministros e políticos de Lula vinda diretamente de Brasília, com exceção de Esther Dweck, parecia uma porção de cones de trânsito ou moinhos de vento na quadra esportiva da favela, onde não estava ventando.


As pessoas da comitiva pareciam cansadas, exauridas, desconfortáveis, sem a compreensão da importância do momento, sem a compreensão da história que agora está acontecendo, sem sopro de vida. Compondo perfeitamente com a comitiva estavam os jovens repórteres, fotógrafos e cinegrafistas da velha mídia em sua conhecida apatia blasé.


No dia anterior o congresso nacional havia imposto séria derrota ao governo e ao país com a derrubada do ajuste do IOF, imposto sobre operações financeiras. Grande parte de deputados e senadores que integram a base do governo votou contra o governo. Isso é Brasília não é a Favela do Moinho.


A base de Lula trouxe na comitiva o ministro das cidades, filho de Barbalho. Seu irmão, o atual governador do Pará com apoio do PT, foi ministro de Dilma e depois de Temer. Belém sediará a importante COP 30, Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025, oportunidade rara para o Brasil se recolocar para o mundo, depois dos anos de destruição de 2015-2022. Jader, o pai, votou pelo impeachment de Dilma. Isso é Brasília, isso é a base do governo, isso não é o Moinho.



Ausências reveladoras


O prefeito da cidade de São Paulo não compareceu para receber o presidente, talvez estivesse ocupado demais com seu trabalho de eliminação da Cracolândia, com transferências forçadas das pessoas para outras áreas da cidade, uma maquiagem grotesca para a situação dos usuários de crack.


Foi convidado e não compareceu o governador do estado de São Paulo. Ele um carioca eleito pelos paulistas que durante debate na campanha de 2022, errou a pronúncia dos Campos Elíseos, bairro onde fica a Favela do Moinho. Ele também não sabia o seu próprio local de votação na cidade. Nada disso impediu o voto dos paulistas para que fosse eleito. Nada disso impediu sua ordem para a ação violenta da PM contra os moradores da favela em abril e maio deste ano.


No mesmo horário do encontro do Presidente da República com os moradores do Moinho, o governador dos paulistas estava inaugurando uma praça já inaugurada em Lagoinha, município paulista de cinco mil habitantes, uma população total menor que o número de moradores da favela do Moinho. Uma semana antes, no dia de Corpus Christi, ele cantou na Marcha para Jesus, evento dos neopentecostais, sob o manto da bandeira genocida de Israel. Tarcísio, um capitão do exército, foi ministro entre 2019 e 2022, antes disso foi diretor do DNIT do governo Dilma. Isso é Brasília, isso não é a favela.


Anielle Franco também estava ausente, embora o encontro na favela do Moinho parecesse ser um momento ideal para a presença de uma Ministra da Igualdade Racial.


Não havia militância uniformizada de partidos ou de movimentos sociais, nem na favela, nem nas ruas de acesso.



Presenças reveladoras


As pessoas cantaram parabéns para Eduardo Suplicy assim que o viram, ele fez 84 anos no dia 21 de junho, não era da comitiva, mas estava presente.


Havia no rosto, no olhar das pessoas e tentando se espalhar pelo ar, um raro brilho, revelador de alívio, de esperança, de orgulho, de justiça. Eram os moradores e muitos lutadores não uniformizados, que não constam em folhas de pagamento de partidos, mergulhados na percepção de que ainda é possível se fazer um país.



Dom Quixote sem Sancho Pança


Lula surgiu, saindo de dentro de um dos barracos da favela, ágil, vibrante, irradiando energia e luz, voz forte e potente, palavras exatas de um verdadeiro artista do povo, um mago mexendo o caldeirão, Dom Quixote sem nenhum Sancho Pança. Um autêntico camisa 10 em campo, na quadra de esportes da favela, durante uma hora fez a magia da palavra do cantador popular se espalhar pela tarde por todos os cantos da favela, neste início de inverno paulistano.


Vereadores e deputados assistiam a tudo com uma expressão de espanto estampada no rosto: seria o último canto do cisne ou o começo de uma nova obra grandiosa?


Lula disse tudo: sobre a justiça e a injustiça de um Brasil arcaico, deu aula de história, escancarou a divisão dos exploradores e explorados que mantém o país como colônia, mostrou todos os rastros da violência fascista, quebrou o protocolo e driblou a segurança diversas vezes, para estar junto das pessoas da favela, falou a língua do povo, como verdadeiro artista do povo, aquele que leva a arte da palavra sem jamais esquecer da verdade.


Não deixou uma única pauta escapar, foi gentil com a ternura necessária para colocar no centro do palco os próprios moradores da favela do Moinho, mostrou o passado e mostrou o futuro como espelho revelado no caldeirão que mexia ali na frente de todos.


Lembrou de dizer que se a área um dia virar parque público, não pode ser sobre o sangue pisoteado dos moradores pobres. Lembrou ainda do último pedido das pessoas do Moinho: que a torre do moinho que dá nome ao local nunca seja derrubada. A favela nunca foi um moinho de vento.


E o mais importante destacou o verbo que é a maior palavra sua para os brasileiros: luta e organização. Quem quer fazer justiça, precisa de luta e organização.


Lula estava feliz no meio do povo no terreiro do Moinho, fazendo o que faz de melhor.



Epílogo


“Lula está perto dos 80 anos e não tem substituto. 

Essa é a desgraça do Brasil.”

(Pepe Mujica – 2024)


“Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou

um país inteiro a sublimar suas tristezas.

O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível.

Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.”

(Carlos Drummond de Andrade, Mané É O Sonho - 1983)


“O que mais me preocupa é que o povo brasileiro possa decidir seu futuro, superar suas contradições sem perder sua alegria.

São meus sentimentos.”

(Pepe Mujica - 2018)



Lula terminou seu espetáculo. Os carros da comitiva presidencial partiram enquanto os seguranças ainda eram vistos pelos telhados dos barracos e por todas as vielas da favela. A tarde avançava, o sol ia se despedindo, o frio aumentava.


De repente uma percepção clara de como o Brasil dança à beira do abismo se fez presente. Depois da tarde com o artista-mago-presidente veio a certeza de que poucos além do próprio Lula compreenderam e compreendem o que está se passando no país, o que se passou ali na favela, a síntese do Brasil que foi, que é, que pode ser.


Comitiva, ministros, políticos profissionais, imprensa, todos continuaram intocáveis na sua apatia. Apenas os moradores e as pessoas de luta pareciam terem sido tocadas pela palavra mágica e reveladora.


O Brasil dança à beira do abismo:


de um lado as pessoas que fogem do seu próprio poder e responsabilidade como brasileiros, fingindo não verem o que se avizinha, desde os políticos até a imensa maioria de cidadãos dos mais variados sotaques e regiões do país,


do outro lado, o fascismo destruidor que saiu da sua caixa-esconderijo em 2014 e incessante, atua 24 horas por dia, em todas as ruas, todos os lugares e não apenas na internet, que é o seu instrumento potencializador, conquistando adeptos, espalhando ódio, fortalecendo a mentira e a perpetuação da exploração.


O Brasil não pode esperar que uma única pessoa, artista do povo, faça tudo pelo país.



Prólogo


É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo.

Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela.

Não tenho tempo para ir na casa de ninguém.

(Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, 1960)


Estava em frente ao Teatro Municipal, quando soube que uma hora depois Lula iria à Favela do Moinho. Parei para pensar se devia ir ou não, tomei um café no balcão de uma cafeteria que resiste ao tempo e às especulações, um lugar simpático, onde todos se conhecem pelo nome. Decidi que ia.


O início de tarde estava bonito, sol num frio leve, vento suave. Ainda caminhando pela Barão de Itapetininga, vi o povo bonito que por ali transita, brasileiros de todas as partes do país, africanos, bolivianos, brilho nos olhos de gente viva, correndo atrás do dia a dia sem perder a humanidade.


Muitos estabelecimentos fechados, 30%, 40% dos prédios. Poucos meses atrás notei 50% deles lacrados, esperando pela gentrificação do centro de São Paulo, no mega-projeto especulativo da “Cidade da Light”.


Passei pela esquina onde foram assassinados Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo. Lembrei do jogral na escola. Quem se lembra? Quem se importa?


Na Praça da República cada vez mais destruída e desmatada, placas de metal isolando a paisagem das pessoas, sabe-se bem o motivo. Nas brechas entre as placas, funcionários de empresas de telemarketing no horário do lanche, sentados de qualquer jeito, procurando um pouco de sol entre as sombras dos edifícios, enquanto comem seus pacotes de farinha processada: biscoito doce, biscoito salgado, biscoito sabor picanha defumada.


A Avenida Vieira de Carvalho continua bonita, não tem mais nada do comércio de poucos anos atrás, continua bonita por causa das suas árvores. No Largo do Arouche encontro os restos da “terceira árvore mais antiga” da cidade de São Paulo, caiu faz pouco tempo, depois de ter seu espaço minado e envenenado dia após dia.


Chego nos Campos Elíseos, Alameda Barão de Limeira, passo na frente do prédio de um antigo jornal, apoiador das várias ditaduras da República, a decadência é visível em todo o seu redor.


Resolvo pegar um táxi, anuncio o destino: “Favela do Moinho”. O taxista, novo no ponto, onde conheço todos os taxistas, se contorce, mas tenta parecer normal.


Pergunto se ele sabe o que vai ter no Moinho, responde com irritação que estão atrapalhando o trânsito no viaduto e em toda a região desde cedo para a visita do “molusco”. Pergunto se sabe da carta de crédito que os moradores irão receber. Ele responde sarcástico, que ele é quem merecia receber esse valor, que nunca viu ninguém receber indenização por desapropriação e que tem certeza que não vai dar em nada, que o que o “molusco” quer é aumentar o número de deputados.


Sim é 2025 e um trabalhador que passa 16 horas por dia atrás do volante, esperando por passageiros no seu táxi, ainda chama o Lula de molusco.


Por todo o caminho, do Teatro Municipal até a Favela do Moinho, vi os rostos de amigos que desapareceram nos últimos cinco anos: o homem da tabacaria, Seo Luís engraxate, o rapaz de óculos da banca de jornal, minhas amigas da empadaria da Vovó, Seo Paulinho, Seo Alfério, Edgard oferecendo um café a mais na padaria, Seo José, Dona Cristina catadora de papelão.


Todos foram embora dentro do genocídio do povo brasileiro.







texto e imagens: Walter Antunes

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