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  • Susana Fuentes

Passarinho


Ele não quis nem molhar o bico. Nem se aproximar do farelo de biscoito.

Eu estava em casa e o pássaro havia entrado pela janela. Deixei à vista água e farelo, enquanto criava coragem para mostrar a ele a saída. É agora, eu pensava, mas logo vi que não conseguiria mover um dedo em sua direção.

Se fosse até bem pouco tempo atrás, quando eu não tinha tantos medos.

As asas davam-me susto a cada vez que eu tentava me aproximar. Se eu o afugentasse com um pano até que ele encontrasse o espaço da janela aberta... Mas ele ficava naquele canto do vidro e quando se debatia era apenas para cima um pouco, e nunca para os lados. Também, do outro lado do vidro era só luz à sua frente, lá em baixo o topo das árvores, o abismo que importava mais que tudo naquele instante. Como poderia contornar a barreira do vidro que para ele não existia?

O único jeito era eu mesma apanhá-lo e soltá-lo no rumo certo. Mas parecia frágil demais para tê-lo em minhas mãos, tive pavor que se desmanchasse ou quebrasse uma asa com o simples toque. Ou talvez ele me bicasse. Olhei para a ponta do bico, era pouco provável que me arrancasse a pele. O medo do contato era pelo receio do desconhecido. Ele tinha medo de mim também. Partia-me o coração vê-lo pressionar a cabeça contra o vidro a cada vez que eu voltava à sala decidida a agir. Bicava a transparência que o dividia do mundo, sem compreender, eu então desistia de me aproximar, ele me dizia fique aí... e eu ficava. Tudo para não vê-lo debater-se.

Por isso abandonei a convicção de superar meus medos e chamei o zelador do prédio. Para ele não tinha problema nenhum. Mas com a mesma naturalidade com que afirmava isso, adiava a ajuda para daqui a uma hora. Não dava para esperar, não por mim, mas pelo pássaro, como seu coraçãozinho aguentaria mais uma hora a separá-lo do mundo? Os poucos voos contra o vidro já comprometiam as penas de sua cauda, onde havia sinais de combate.

Aí me armei de coragem fruto de minha indignação e pensei que se para o senhor na portaria tudo aquilo era tão simples assim, eu mesma arregaçaria as mangas. Aproximei-me. Dessa vez, o pássaro não se mexeu. Era uma rolinha, eu chamaria de rolinha o que não era nem beija-flor, nem sabiá, bem-te-vi ou pardal. A penugem de um acinzentado lilás. Olhinhos redondos, o bico encurvadinho de lado... Ele decidira ficar parado e me olhava como estátua, sem piscar. E reagindo à sua decisão, também eu virei pedra. Poderíamos ficar uns bons minutos ali. Mas não quis permanecer no jogo, pareceu-me injusto fingir que acreditava na sua astúcia, e que ele me enganava com seu disfarce que lhe dava tanta força. Apesar do alívio em ver que ele afinal desistira de debater-se.

Pelo menos me dá tempo para pensar. Mas ali pensar era o pior a se fazer, e no instante em que, num sopro, afugentei o pensamento, lancei as mãos ao alto e não foi de uma vez como eu pensava, foi em fuga no bater de asas que minha mão direita aparou seu corpinho, e com a mão esquerda fiz a base onde ele de repente ficou quietinho. Era um corpo real, não se esfacelava como as mariposas, não fugia fácil como os insetos, não me causou sobressalto. Ele se rendeu assim que sentiu as minhas mãos nas asas. As asas se encaixaram com jeito sem quebrar, dois passos meus e já estávamos no centro da janela aberta.

Havia uma rede e tive medo que ele se atrapalhasse, fiz-lhe um carinho com a ponta do dedo, e não tive mais tempo para mais nada: numa explosão ele se lançou através da rede no ar que durou infinito até o parapeito de uma janela mais alta. Ali ficou um quarto de hora, recuperava-se do susto, parecia bem, mas eu estava determinada a não abandonar minha vigília enquanto ele não batesse novamente em retirada.

Atendi o telefone e mantive a conversa sem tirar os olhos do parapeito da janela em frente. Ele não se movia. O que esperava para juntar-se aos outros nas copas das amendoeiras e dos flamboyants em flor?

De repente meu amigo se lançou, o voo esperado, mas despencou, sem bater as asas, tive tempo de pensar se ele se atirava ou caía, mas sem fôlego pude ver perfeitamente quando ele girou o peito firme, as asas fechadas junto ao corpo em espiral, já era dono de seu rumo, e sumiu na folhagem viva, espessa.

Susana Fuentes é autora do romance Luzia (7Letras, 2011), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2012. Seu livro de contos Escola de Gigantes (7Letras, 2005) foi selecionado para a Biblioteca do Professor no programa “Rio, uma cidade de leitores”, da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro em 2010, sendo distribuído entre os professores da rede do município. Doutora em Literatura Comparada e Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, desenvolve pesquisa de Pós-Doutorado UERJ/FAPERJ.

Teve seus contos publicados em diferentes antologias e escreveu a peça teatral Prelúdios: em quatro caixas de lembranças e uma canção de amor desfeito, onde também atua. Em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim no Rio de Janeiro em 2009, foi selecionada para participar do festival de teatro The New York International Fringe Festival em 2012 e convidada para encerrar o 4º Festival Nacional do Conto em Florianópolis, em 2014, no SESC. Participou em 2014 e 2015 do Salão do Livro de Paris, do Printemps Littéraire Brésilien na Université Paris-Sorbonne, e de leituras n’ A Livraria em Berlim. Do livro Escola de Gigantes, o conto Sumaúma e reco-reco, ‘Tiger and the Silk Cotton Tree’ na tradução de Alison Entrekin, faz parte da edição especial de Junho de 2015 sobre o Brasil da revista Wasafiri - International Contemporary Writing.

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