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  • Rogério A. Tancredo

Andara: viagem à morada do ser


Espírito Peráclito, tu que és o único pássaro

Que desce sobre mim na [minha noite untuosa,

Fura meus olhos para que eu veja mais,

Para que eu penetre a unidade que tu és,

A liberdade que tu és,

A multiplicidade que tu és,

Para eu subir de minha pequenez e me abater em ti

(Jorge de Lima in: Espírito Peráclito)

Se tem um tema caro à história da literatura - entre tantos que a movem - este é o tropo da viagem, palavra cujo significado segundo o vernáculo, é “ato de ir de um a outro lugar mais ou menos afastados”, começa a ser explorada poeticamente desde a fundação do ocidente, quando Homero, junto a sua Odisséia, começou a levantar o alicerce desse “templo” que é a literatura ocidental, assim anota os documentos da história. É importante frisar que o termo Viagem vai ser explorado aqui no sentido de Travessia, que por sua vez se aproxima do termo alemão Bildung. Então temos na figura de Odisseu – o herói mor da antiguidade clássica rebatizado de Ulisses pelas línguas latinas - a imagem do desbravador, daquele que abre os caminhos da jornada.

Ulisses constitui aquilo que alguns crítico contemporâneos definiriam como um “discurso” da civilização ocidental; para os historiadores, um “imaginário” de longa duração – em outros termos, um arquétipo mítico que se desenvolve na história e na literatura como um constante logos cultural (BOITANI, 2005, p. XIV).

Assim, qualquer título poético que traga a palavra Viagem nos remete – apesar da distância – à aventura originária de Odisseu, a aprendizagem através do mito da poesia, afinal, Ulisses era o paradigma, o exemplo de inteligência e beleza a ser seguido. O herói fundador, voltando para casa depois da guerra, está jogado no mundo e precisa superar as adversidades da jornada com perspicácia e ética. Andara, diferentemente dos gregos que tinha como verdade a invenção do mito e a poesia moderna a muito se afastara dessa verdade, traz essa característica da reflexão por meio da jornada, porém, o faz através de um projeto estético, através da poesia. “Esta viagem a Andara. E onde mais? Na vida. Andara é perto e longe. Andara está dentro de ti. E fora. E dentro de mim. Diz a voz” (CECIM, 1988). A cidade palavra de Vicente Franz Cecim, torna-se o mar a ser navegado, a floresta ressignificada através da viagem originária de Ulisses, esse signo tomado como referência ao longo da história literária:

Se Ulisses atravessa as épocas, deve isso ao fato de ser, desde os primórdios, um signo – em âmbito cultural, o signo de uma inteira episteme [...] Cada cultura está livre para interpretá-lo como tal no âmbito de seu próprio sistema de signos, atribuindo-lhe uma dupla valência, ora baseada nas características míticas do personagem, ora nos ideais, nas questões, nos horizontes filosóficos, éticos e políticos daquela civilização (BOITANI, 2005).

Lembremo-nos da jornada do vate de Florença pelos arcos do inferno, do Quixote de Cervantes cavalgando pelas paragens da loucura, de Leopold Bloom percorrendo as ruas de Dublin, para nos situarmos, da travessia de Riobaldo pelas veredas do sertão, ou do mar de palavras Galáxia de Haroldo de Campos, assim por diante. Então podemos dizer que a viagem à andara nada mais é do que uma referência à aventura desse navegador primevo, e seus personagens que estão em constante estado de sono, ou seja, numa viagem pelo inconsciente como diriam os surrealistas, são os muitos Ulisses espalhados pela floresta, ressignificados pelo contexto mitológico amazônico. A viagem, aqui, acontece na floresta de palavras, na Amazônia transformada em verbo.

Andara é o mundo, isto está claro em todo o projeto dos livros visíveis de Andara como mostra a citação acima: “E onde mais? Na vida...”, e nós - assim como Ulisses – estamos jogados no mundo, e consequentemente precisamos nos conhecer, nos colocarmos à procura da verdade, e isso só pode se dar através da leitura desse mundo o qual o destino nos confiou, ou seja, por meio da leitura dos livros visíveis de Andara. Andara: viagem à morada do ser, como diz o título desde ensaio, é o que propõe o projeto como procura, portanto, a travessia pelos livros visíveis de Andara, a leitura das histórias, dos arcos narrativos que se proliferam e atravessam a floresta Santa Maria do Grão.

“Tu escreves um livro com tinta invisível. Por que fazes isso?”

A sentença acima aparece nas primeiras capas dos livros de Andara. Sempre abaixo do subtítulo “O livro invisível” de Viagem a Andara, e se dirigindo ao leitor, prova o que estamos falando: que Andara o tempo todo nos remete ao livro, à leitura e a escrita. Numa rápida leitura nos leva a crer no percurso que cada um faz desde o nascimento até a morte, a própria existência, e que fica registrado apenas na memória de alguns, enquanto vivos, e não deixa de ser isso, mas se tratando de literatura (e literatura fantasma como Cecim classifica os livros de Andara, aquela que morre e retorna ressignificada) e por conseguinte obra de arte, temos de fazer algumas considerações.

Primeiro: livro, leitura e escrita no projeto, estão ligados à palavra viagem (travessia), se colocar na procura através do ato de leitura como deixamos entender até aqui. Segundo: o livro como obra – assim como o projeto Andara - é um processo inacabado – como avisa Blanchot: “o escritor nunca sabe que a obra está realizada. O que ele terminou num livro recomeçá-lo-á ou destrui-lo-á num outro.” Ou seja, Andara renasce a cada leitura, sob um novo olhar, olhar daquele que a lê no momento, e que escreve “o livro com tinta invisível”.

Mas a poesia – assim como o mito – nasce de um estupor diante do magnífico e misterioso mundo como bem aponta Boitani “A visão da maravilha que acabo de delinear inspira cada uma das páginas que seguem: o estupor permeia tanto os versos de Homero como aqueles de Tarsso e Leopardi, tanto os diários de Colombo e os de Darwin como os romances de Conrad.” Cada época corresponde, à sua maneira, a esse estupor e, Ó Serdespanto (2006) personagem e livro de Cecim é a personificação em Andara desse estupor, o próprio homem, que ao vir à luz espanta-se com a grandeza e o mistério da vida – ser de espanto, e jogado na floresta (o mundo) se coloca à procura do que constitui tal mistério:

A vida. E, nela, alguém que escreve [...] Sentimento de medo agora mesmo, ao escrever isto: tentar abrir, dobra a dobra, insistindo, para ver o que ela é, a vida. Registrado pelo observador de Si, sentindo-se. Vida ama ocultar-se, disse Heráclito (CECIM, 2006, p. 9 – 10)

A procura se dá pelo processo da escrita, e a voz desse serdespanto sente medo de não ter acesso ao mistério da vida porque as coisas se ocultam na sua essência “vida ama ocultar-se, diz Heráclito”. O ato da escrita como procura e descoberta remete à leitura, e é aí que queremos chegar. O ato e o exercício da leitura como aventura – travessia – assim como a escrita, só pode levar ao conhecimento, a uma compreensão do mundo e consequentemente da existência. A obra, neste caso os livros, produto do ser, e justamente por nascer no âmago do ser, sob a égide do aniquilamento do eu, repercute no outro:

É nesse ponto que deve ser observado com sensibilidade a duplicidade fenomenológica das ressonâncias e da repercussão. As ressonâncias se dispersam nos diferentes planos da nossa vida no mundo, a repercussão nos chama a um aprofundamento de nossa própria existência [...] Dito de maneira mais simples, trata-se de uma impressão bem conhecida por todo leitor apaixonado por poemas: o poema nos prende por completo. Essa tomada do ser pela poesia tem uma marca fenomenológica que não engana. A exuberância e a profundidade de um poema são sempre fenômenos da dupla: ressonância-repercussão. Parece que, por sua exuberância, o poema desperta profundezas em nós (BACHELARD, Gaston, 1978, p. 187).

Essa ressonância e repercussão de que fala Bachelard é o impacto da obra sobre o indivíduo. Ninguém sai ileso depois de confrontar-se com uma obra de arte – é até clichê falar isso – e se o faço, é justamente para explicar o que propõe os livros de Andara, levar à experiência da descoberta através da leitura, experiência única, porém essencial, que nos leva não só ao sublime, ao belo, mas também aos fantasmas, nossos temores, através de alguma lembrança por exemplo, que a obra suscite na alma. Aí estaria a essência da leitura e da produção de poesia já que os dois processos estão intrincados na obra de Cecim como descoberta do mundo.

É isso. Este é o começo de uma fábula que avançará por entre grandes fendas e períodos de silêncio como só se ouve na ausência humana, a floresta às vezes contorcida, contorcido o silêncio às vezes rompido não por essas vozes tão baixas essas vozes, murmuradas: e sim por gritos que vem de longe na noite, ou é bem perto É mesmo em nós (CECIM, 1994, p. 87 – 88).

Neste trecho temos palavras como silêncio, fendas, ausência, que nos remetem ao espaço poético, à reflexão, a ausência como recolhimento, descoberta. É preciso escutar às vozes que habitam em nós, que falam do fundo da alma. Isso é a experiência do silêncio da obra, que pode se dar tanto na produção como na leitura desta: “A obra é solitária: isso não significa que ela seja incomunicável; que lhe falte leitor. Mas quem a lê entra nessa afirmação da solidão da obra, tal como aquele que a escreve pertence ao risco dessa solidão.” (BLANCHOT, 2011). E para ser obra é preciso haver esse fenômeno ressonância e repercussão entre livro e leitor, onde no âmago desse que se depara com a obra aconteça algo que o desestabilize e o jogue no aberto da possibilidade. Continuamos com Blanchot:

O escritor escreve um livro mas o livro ainda não é obra, a obra só é obra quando através dela se pronuncia, na violência de um começo que lhe é próprio, a palavra ser, evento que se concretiza quando a obra é a intimidade de alguém que a escreve e de alguém que a lê (BLANCHOT, 2011, p. 13).

E Andara quer ser obra – e já o é – não só porque remete o leitor à solidão, a ausência, ao silêncio, mas por estar livre de significações predeterminadas o que possibilita uma liberdade total capaz de engendrar múltiplas significações e novidade a cada nova leitura. Viagem à andara é a viagem à morada do ser, da descoberta da essência que constitui cada um. O homem, como ente, está jogado no mundo portanto é preciso corresponder a seu tempo “Jogado em um mundo, o ser-aí encontra a partir de sua própria dinâmica compreensiva aquilo em virtude de que ele pode realizar o poder-ser que é...” (CASANOVA, 2009). Existir acaba sendo um leque de possibilidades, mas para uma existência plena é preciso estar consigo mesmo em sua totalidade, em sua morada, é o que diz Heidegger:

Não apenas estar em casa aqui e acolá, também não apenas estar em casa em qualquer lugar [...] estar por toda parte em casa significa muito mais: estar em casa a qualquer momento, e, sobretudo na totalidade. Nós denominamos mundo este na totalidade e sua integralidade. Nós somos, e porque somos, esperamos sempre por algo. Sempre somos chamados por algo como um todo [...] A filosofia, a metafísica, é uma saudade da pátria, um impulso para se estar por toda parte em casa, uma exigência; não uma exigência cega e sem direção, mas uma que desperta em nós o sentido para essas questões e para a sua unidade... (HEIDEGGER, 2015, p. 07 – 08).

Não cabe aqui, e nem é intenção desse trabalho, debruçar-se sobre o conceito e a estrutura do ser - da metafísica em si – devido à densidade da questão que ocupou boa parte da história do pensamento filosófico desde de Aristóteles a Martin Heidegger. Mas apenas mostrar que os livros visíveis de Andara apontam nessa direção: o leitor deve se colocar no aberto da obra para encontrar sua unidade, encontrar seu “Umanoh” como diz o próprio Vicente Cecim.

Assim o fazendo, colocando-se na procura, na busca de sua unidade, estará correspondendo à altura o seu tempo. E isso se dá através da obra, ou seja, por meio e através da linguagem poética, especificamente aqui, por meio dos livros visíveis de Andara, que se multiplicam e se desdobram em arcos narrativos envolta do próprio eixo: A viagem a Andara, projeto literário moderno de Vicente Franz Cecim.

CECIM, Vicente Franz. Silencioso como o Paraiso, Ed. Iluminuras - São Paulo, 1994.

___________________. Ó Serdespanto, Ed. Bertrand Brasil - Rio de Janeiro, 2006.

BOITANI, Piero. A Sombra de Ulisses, Ed. Perspectiva – São Paulo, 2005.

BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário, Ed. Rocco – Rio de Janeiro, 2011.

HEIDEGGER, Martin. Conceitos Fundamentais da Matafísica, Ed. Florense Universitária – Rio de Janeiro, 2015.

LEAL, Izabela. ALEA, Estudos Neolatinos in: O Canto das Sereias e a Embriaguez do Tradutor. Ed. 7 Letras, RJ – 2012.

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