top of page
  • Foto do escritorLuama Socio

Wanderley Codo e as polêmicas da corpolatria 30 anos depois


Há 30 anos o psicólogo social Wanderley Codo, em co-autoria com o também psicólogo e educador Wilson A. Senne, publicou “O que é corpolatria”, pela famosa coleção Primeiros Passos, da editora Brasiliense.

Ao longo das três últimas décadas as questões do corpo, na nossa cultura, parecem ter se tornado cada vez mais relevantes, o que faz com que o texto do pequeno livro continue a ser interessante ainda hoje.

Assim, tive vontade de saber sobre a visão atual de Wanderley Codo a respeito de vários temas suscitados pelo livro de 30 anos atrás, obviamente sob a perspectiva do momento atual, e propus a ele 10 questões, as quais ele me respondeu com muito bom humor e sabedoria.

A título de introdução, ele me explicou que o texto “O que é corpolatria” foi escrito a pedido de Caio Graco (o famoso editor da Brasiliense, falecido em 1992) para gerar polêmica:

“A ideia inicial era para a coleção Segundos Passos, que teve dois ou três livros, a coleção faliu e eu e o Caio resolvemos publicá-lo em Primeiro Passos. Ele queria ‘O que é corpo’, eu advoguei ‘O que é corpolatria’. Portanto falta a este texto o rigor que, por exemplo, você pode ver em ‘O que é alienação’ (outro famoso livro de Wanderley Codo publicado pela coleção Primeiros Passos), pois foi feito com o objetivo da polêmica”.

Após este esclarecimento inicial, partimos às questões:

No final do livro está escrito: “se a alienação inventou o espelho, é a militância organizada que poderá quebrá-lo”. Posto isso, você acha que a “corpolatria” pode ser considerada implícita no escopo dos movimentos LGBT e feministas, nesse momento em que, mais do que nunca, o próprio corpo passou a ser nitidamente uma “bandeira”, a despeito do caráter político desses movimentos?

Nem tudo que elege o corpo como bandeira é alienação, o movimento feminista lutou contra uma opressão real da mulher que se exercia principalmente através do corpo. O corpo da mulher não lhe pertencia.

Esta revolução e a revolução LGBT foram as revoluções bem sucedidas, ganharam. Claro que ainda existem sinais daquela opressão pré-60, mas hoje pode-se dizer sem medo de ser feliz que a mulher é dona do próprio corpo e os gays tem direito à existência. Movimentos organizados contra o racismo, por exemplo, não tiveram a mesma sorte.

Uma das revoluções mais belas do final do século XX e início do século XXI, ainda em curso, literalmente o movimento feminista, aportou à cena mundial a presença da mulher, invisível antes dela.

Claro que o movimento feminista, como soe acontecer, também foi vítima da alienação. Um dos pontos mais graves foi o de demonizar o trabalho do cuidado, considerá-lo opressivo, e reivindicar com toda a força o direito à alienação, o seu trabalho na fábrica e nos escritórios como apenas o homem fazia.

O cuidado é belo, é um dos trabalhos menos alienados e alienáveis, é trabalho no sentido real do termo, a arte de mudar o mundo à sua imagem e semelhança, e muda o mundo no que o mundo tem de mais belo, a criação de um ser humano. O resultado desta luta foi a mulher entregar o papel de cuidado para outras mulheres, nas creches, ou com a babá em casa, ou com a vovó.

Vis a vis o mesmo ocorre com o movimento LGBT, outra vez uma revolução vitoriosa. Descriminalizaram o homossexualismo, puderam viver seus desejos e seu próprio corpo, outra vez um movimento contra a repressão e a alienação, e não corpolatria.

Outra vez um ou outro erro, que o transforma em vítima da alienação que combate. Por exemplo, a parada do orgulho gay, estratégia brilhante e bem sucedida de luta contra o preconceito, transformou-se em uma forma de objetivação da sexualidade, ela que é o grande reduto de nossa subjetividade. A minha sexualidade se distancia de mim mesmo, e passa a ser uma ação objetiva e objetivada quando se torna bandeira de luta. Era inevitável. Inevitáveis tanto o recurso da parada quanto a consequência da reificação.

E já que falei sobre essa questão dos “movimentos”, que explicação você daria para o surgimento dessa nova fase dos movimentos feministas?

Não sei ao que você se refere com ‘nova fase dos movimentos feministas’, me conte e eu respondo.

O tópico “velocidade do nosso tempo”, embora não tratado especificamente no texto de 1986, aparece como sintoma de uma das faces da “alienação capitalista”, quando se fala dos modismos efêmeros das atividades físicas disponíveis no mercado. Você teria uma explicação mais detalhada sobre as bases da sensação dessa velocidade, com elementos da fundamentação marxista?

A velocidade de nosso tempo não é apenas um fenômeno ligado à alienação capitalista, é muito mais um fenômeno que decorre dos avanços tecnológicos e principalmente na comunicação via informática. Hoje vivemos em uma sociedade do autor, qualquer um de nós publica e pode ser lido pelo planeta em minutos. Claro, o número de tolices cresce na mesma proporção em que aumenta o número de autores.

Não é uma sensação, a velocidade é real.

Confesso que por vezes tenho dúvida, estaríamos ainda vivendo no capitalismo?

Esta velocidade e o mundo pós-internet propiciam, por exemplo, amiúde, uma economia sem moeda, sem lucro, portanto sem exploração do trabalho alheio, pedras fundamentais na construção do sistema capitalista. Ainda escrevo sobre isto, assim que entender o que está acontecendo. Até agora não entendo bulhufas.

De um modo geral, parece que o esforço das terapias psicológicas convergem para o objetivo de conduzir o paciente, ou o aluno, à percepção e identificação de um grau considerado minimamente necessário, de totalidade existencial, posto que se admite, na doença psicológica, a ocorrência de inúmeras forças desagregadas que parecem constituir a pessoa. Em que medida é possível uma saúde psicológica, ao mesmo tempo em que o contexto social é de fragmentação extrema?

Antes o indivíduo frequentava a terapia por ter paranoia, ‘um jacaré embaixo da cama’, ou depressão, ‘ninguém me ama ninguém me quer’. Hoje vai com uma única pergunta, ‘quem sou eu?’

A crise é uma crise de identidade, o espanto de Mário de Andrade, ‘é impossível ser um nesta cidade’, referindo-se a São Paulo, se espraiou por todo o planeta, ‘é impossível ser um neste mundo’.

Saúde psicológica? Ainda vale o vaticínio de Freud, saúde mental é a capacidade de amar e trabalhar. Por vezes sinto que estamos na primeira fase do alienista de Machado de Assis, entraremos sem dúvida na segunda.

Você acha que o marxismo pode dar alguma alternativa de organização social que não seja espelhada nos regimes totalitaristas repressivos, denominados, talvez indevidamente de “marxistas”, como das quase antigas União Soviética e China?

Esta é a pergunta mais fácil de responder: NÃO SEI.

Como seria possível a um brasileiro, deixar de ser subserviente e ingênuo em relação aos assuntos políticos? Seria possível, por exemplo, que um rapaz ou uma moça cultos, digamos, formados em ciências sociais, pudessem ser efetivamente críticos, ativos e produtivos, não apenas em suas imaginações?

Tuas observações não se restringem ao brasileiro. Não conheço seres humanos que estejam fora da tua definição, exceto loucos como eu e você. Ser crítico, ativo e produtivo, doi.

Você acha que é possível ligar as informações, teorias e imaginações sobre política, com a vida “real”? E o que seria “vida real” para você?

Esta pergunta é uma falácia

Por que muitas pessoas estão espantadas com a onda “direitista”? Trata-se de uma simples “mecânica” social, do tipo: reação às propagandas consideradas “esquerdistas” das minorias, que se alastraram nos últimos anos? E nesse âmbito, o que significariam agora essas palavras, “esquerda” e “direita”?

O que significam as palavras esquerda e direita exige um tratado que eu não tenho competência para escrever.

Sobre o momento de hoje: a direita sempre houve, e com o mesmo grau de estultice, o fenômeno novo é que saiu do armário. Isto é parte do legado de um governo de esquerda no Brasil, tanto por bem quanto por mal.

Por bem porque os governos de esquerda, Lula e Dilma, permitiram e incentivaram o combate à corrupção e com isto ameaçaram o ganha-pão dos salafrários que agora tomaram o poder.

Por mal porque erraram grosseiramente em seus governos e se tranformaram em telhados de vidro.

Vivemos em um paradoxo kafkiniano, os corruptos tomam o poder de uma mulher honesta, para fugir da cadeia, usando como mote, quem diria, o combate à corrupção, Macunaíma de novo, em pleno seculo XXI.

O que você pensa a respeito das “desconstruções” históricas do momento, do tipo: Machado de Assis na verdade era um racista, burocrata e medíocre; Gandhi era pedófilo e machista, etc.?

A palavra desconstrução não quer dizer absolutamente nada.

Como você interpreta o significado da palavra “democracia”, que tem sido bastante utilizada nas redes sociais por conta das circunstâncias políticas atuais?

Como a palavra DEUS, pode significar qualquer coisa.

Wanderley Codo é professor titular da Universidade de Brasília. Entre suas muitas produções escritas tem 14 livros publicados, entre eles, “O que é alienação”, “O que é corpolatria” (em co-autoria com Wilson A. Senne) pela coleção Primeiros Passos da Brasiliense, “Educação: carinho e trabalho”, e “Indivíduo, trabalho e sofrimento”, ambos pela editora Vozes.

foto Wanderley Codo - divulgação

foto que ilustra o texto - Walter Antunes

Katawixi é um lugar de crítica,
análise e divulgação de pensamentos, pontos de vista filosóficos, práticas
e produtos culturais, livres de vínculos institucionais, 
concebido por
Luama Socio e Walter Antunes.
 
Katawixi é antes de tudo o nome de um povo que flutua agora em algum lugar na Amazônia.
bottom of page