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Identidade, luta política e a ideia de democracia


ilustração Luama

O tópico da identidade no escopo da luta política é da maior importância na medida em que expressa a contraparte complementar da organização social sob a ideia de democracia, a qual implica a participação do povo no governo. Toda tentativa de dissolver esse tópico equivale a uma postura antidemocrática.

Nessa dissolução estão incluídas as dissensões e confusões, nos próprios setores delimitados de lutas identitárias quando, por exemplo, rechaçam a participação, em suas lutas, de vozes aliadas não oriundas do mesmo corpo identitário. A multiplicidade de interesses num contexto cultural complexo se reflete em várias elucidações teóricas que tentam dar conta de uma realidade social de fato instável e contraditória na dinâmica entre o regime, as leis e as práticas culturais. Mas o caso é que nenhuma confusão anula a questão identitária como elemento constitutivo mesmo da democracia, refletindo condições particulares dos aspectos universais, não importando em qual grau ela se determine.

O sentido da luta identitária é forjado inteiramente no âmbito do jogo simbólico das relações humanas embora sua necessidade esteja enraizada em necessidades materiais. A questão da identidade como luta política evolui de um entendimento fenomenológico, em que historicamente as identidades são identificações de sujeitos outros em contextos descritivos ou caracteriológicos, para o estatuto de objeto de intenção, de sujeitos que reivindicam a identidade como direito através do reconhecimento qualitativo do ser existente, com especificidades universais.

Enquanto que no âmbito pessoal, individual, a identidade se faz por uma inevitabilidade que depois poderá ser reconhecida, pelo sujeito, como uma parcialidade numa existência talvez desejavelmente mais ampla (algumas pessoas dizem ser possível atingir uma percepção de que uma identidade é uma parcialidade frente à potencialidade “mística” do desenvolvimento da percepção, a qual liberta o indivíduo de compromissos fixos com as identidades acidentalmente agrupadas em sua psique em favor de uma maior liberdade perceptiva), no âmbito cultural a constituição identitária é elemento fundante da organização social, em que os sujeitos desempenham papéis em um grupo social, o qual é determinado justamente pelas percepções condicionadas pelas identidades.

Trata-se de uma obviedade o fato da construção identitária - pois a própria “natureza” humana é tal que pode (e de fato o faz) se identificar com qualquer coisa . É assim que no âmbito social a identidade expressa o próprio corpo político, o qual reflete complementarmente essa qualidade universal humana, da disposição à identidade: se todas as coisas percebidas formam a identidade do próprio homem, todas as identidades devem ser então percebidas como tais, e incluídas, em seus interesses, na organização social, como sujeitos. A força da luta identitária deve vir de sua intencionalidade plenamente consciente, o que faz dela o elemento democrático e propriamente político por excelência. É isso que talvez torne possível o professor de direito Pedro Serrano dizer: “se o povo não cuida dos seus direitos, ninguém vai cuidar”.

É possível então tocar esse tópico a partir de vários ângulos, e todos eles são desejáveis para a construção de um entendimento sobre a necessidade de tratar desse tema. É assim que emergem imbricados os aspectos históricos, sociológicos, filosóficos e sociológicos que confluem conhecimentos diversos para a questão.

Na luta política pode-se dizer, grosso modo, que a questão identitária aparece como contraparte cultural da uniformização generalizada imposta pelos sistemas sociais à diversidade humana, que remonta historicamente ao surgimento dos estados, da indústria, da hegemonia técnica associada ao desenvolvimento da ciência materialista e do capitalismo, desembocando no consumismo como forma de vida privilegiada. A questão identitária reflete ainda uma estrutura interna antiquíssima dessas condições: a divisão do mundo entre senhores e escravos.

Assim, num país em que o estado, estruturado formalmente, garante os direitos a toda sua população, a luta política identitária apenas aparece como contraditória quando não se reconhece que essa luta reivindica a garantia da diferença inserida na estrutura de igualdade de direitos. Essa luta, como uma espécie de sintoma de saúde social num esforço de correção ou cura das injustiças, é a única alternativa que expressa um vislumbre de verdadeira humanidade na finalidade da convivência social. A despeito de todos os totalitarismos, jamais poderá ocorrer o apagamento das diferenças ou sua total subjugação. A aspiração ao universalismo do humano no sentido do “poder do negativo" é uma quimera e um horror do ponto de vista real e material.

Essa posição pode ser exemplificada nas palavras de Douglas Rodrigues Barros, em “Contra o retorno às raízes: identidade e identitarismo no centro do debate”: “Noutros termos, não há possibilidades reais de superação das tendências racistas do capital no jogo que ele próprio impôs. Por outro lado, a particularidade do negro tem em si a potencialidade de suplantar essa condição não aceitando os termos postos a partir da reivindicação de sua própria particularidade”.

Em uma sociedade como a brasileira, em que a “democracia tateia”, justamente a luta identitária é importante para a garantia de um mínimo grau de equilíbrio humanista, já que os direitos sociais, invariavelmente, são o resultado de lutas das minorias identitárias. Mesmo assim a democracia continua sendo uma tendência entre outras, num contexto desfavorável e historicamente determinado, como lembra Marilena Chaui em entrevista a Juca Kfouri em 17 de Abril de 2018 na TVT:

“O direito não se refere ao que é específico, como uma carência, e nem se reduz ao privilégio. O direito é sempre universal. Ou ele é o mesmo para todos ou, quando se tem as minorias, ele é universalmente reconhecido por todos como um direito. O direito se opõe à carência e ao privilégio. Ora, uma sociedade que é feita de carência e privilégio está impossibilitada de construir a democracia”.

Por outro lado, sob o ponto de vista da democracia consolidada de países “de primeiro mundo", ou seja, para um certo ponto de vista que assume a civilização contemporânea como expressão do fracasso do humanismo, a luta política identitária não seria mais do que um sintoma do irracionalismo disfarçado de inteligência, o qual se caracteriza pela enunciação do morto. A enunciação substitui o perdido pelo vazio fantasmagórico das palavras agora desvinculadas de sentido real. Na medida em que é enunciada, a questão identitária já é uma questão dissolvida.

“O direito assume irresistivelmente essa curva maléfica que faz com que, se uma coisa é evidente, todo o direito seja supérfluo; e, se a reivindicação de direito for necessária, a coisa está perdida: o direito à água, ao ar, ao espaço atestam a extinção progressiva de todos esses elementos. O direito de resposta indica a ausência de diálogo etc.”, diz Jean Baudrillard em “A transparência do mal”.

Sob esse ângulo a condição cultural humana, ao invés de evoluir em direção a um melhoramento de perspectivas, se agrava e se aprofunda pelos abismos da morte porque o esforço de humanismo civilizatório chega a um ponto de inversão de seus próprios valores pelo retorno do recalcado. O totalitarismo da maldade inclui assim a subversão e a confusão extremas da luta identitária, dominada na penumbra pelos poderes capitalistas, que a transforma em mercadoria como tudo o mais, iludindo os grupos de identidades diversas, vitimados de consumismo ou presos às eternas grades da escravidão, não enxergando a manipulação, pelos poderosos, dos seus desejos mais irracionais, posto que humanos. Ainda surge a falácia do “direito” à irracionalidade, expondo os limites da complexidade da entidade humana frustrada em seus equilíbrios, os quais definiriam a própria ideia de homem como senhor de seu destino pelo reconhecimento de sua concomitante e inerente liberdade no topo da montanha das forças contraditórias de sua “natureza".

No aprofundamento infinito do mal o enfraquecimento da luta identitária no plano concreto inclui também, como observou Douglas Rodrigues Barros, a neutralização dos próprios elementos dessa luta na medida em que eles sofrem das contaminações imaginativas a respeito da necessidade de reforço de traços identitários uniformizadores, tais como, por exemplo, aqueles oriundos de raízes ancestrais comuns para o incremento do discurso político (como é o caso do movimento negro), gerando fragmentação e desmoralização da luta política.

Ocorre que a própria compreensão do social demanda uma capacidade para o pensamento complexo. Na falta deste, a questão da identidade, no escopo da assimilação da diversidade, é alvo de reducionismos simplistas, expressivos de uma abordagem caracterizada pela simples rejeição ou negação. A identidade, como signo da unidade, irradia-se no contexto social como diversidade, através da multiplicidade. Esses são os pólos da própria ideia do humano em sua existência natural, cultural e social, e isso é a complexidade do pensamento refletida na estrutura da convivência.

A ideia de identidade no âmbito político exige a maturidade e a capacidade do exercício intelectual livre de sentimentalismos. Num espectro mais amplo da subjetividade, a brutalidade dos raciocínios baseados na diferença e concomitante competitividade decorrente da subversão do “instinto de sobrevivência" tem que ser necessariamente transcendida, para que haja a compreensão da demanda pela identidade política.

Pode-se enxergar, por exemplo, como início de um pensamento, o vazio identitário histórico do brasileiro, como bem assinala Darcy Ribeiro em “O povo brasileiro”, como uma marca paradoxal da formação da própria identidade e como sinal para o preenchimento desse vazio.

Num passo a mais pode-se também perceber que a contradição entre as concepções brutais e a inteligência humanista no escopo da questão da identidade está relacionada com a complementaridade dos âmbitos individual e social. Do ponto de vista individual, a identidade é um processo do eu, que se caracteriza por um movimento de separatividade, controle, e poder. Do ponto de vista social, a identidade se caracteriza por um movimento de integração, partilhamento e participação. Essa contradição nos aparece como tal na estrutura dualística inerente às categorias do pensamento refletidas na linguagem e cultura.

Uma alternativa lógica para o ultrapassamento dessa contradição é indicada já pela psicanálise: “Freud opõe uma radical objeção ao sujeito como plenitude e presença de si. A postura freudiana dá lugar a uma descentralização que reconduz à origem da diferença na identidade, assumindo-a como duplamente constitutiva de si. Designando o outro como condição necessária da identidade, Freud mostra que quando nos referimos ao eu aludimos inevitavelmente ao outro”, explica Mauro Maldonato em “A subversão do ser”.

Porém obviamente esse “ultrapassamento" freudiano, na medida em que se inscreve na dimensão linguística e, portanto, constituindo um elemento de “experiência deformante” inerente à linguagem, além de não substituir a exposição da clássica complementaridade da dialética hegeliana do “senhor e do escravo” a respeito da consciência de si, por seu lado apenas aumenta as complexidades e os abismos que justificam a luta política identitária na medida em que reflete essa questão em nível individual.

Acrescenta-se o nível social e a questão identitária segue estreitamente vinculada à paisagem econômica, a qual é condicionada por um primitivismo estrutural bem aquém da condição individual humana reconhecida pela psicanálise ou pela filosofia, como se pode depreender da leitura de Florestan Fernandes em “As mudanças sociais no Brasil”:

“A minoria privilegiada encara a si própria e a seus interesses como se a nação real começasse e terminasse nela. Por isso, seus interesses particularistas são confundidos com os interesses da nação e resolvidos desse modo. Enquanto que os interesses da grande massa excluída são simplesmente esquecidos, ignorados ou subestimados. Os assuntos de mudança social entram, assim, na esfera do controle social e da dominação de classe, com uma ótica enviesada, que identifica a nação com os donos do poder”.

Assim é que o pensamento complexo terá que lidar com o primitivismo configurador da situação concreta, a qual exprime a própria falta de pensamento onde ele poderia se fazer presente o que, neste caso, modificaria toda a situação.

Em linhas gerais a capacidade do pensamento, esse fenômeno reflexivo linguístico da percepção, tem como uma das suas funções assimilar a identidade como a própria estrutura da forma, a partir da qual poderá originar o conceito do humano como o ser da liberdade dessa forma, pois que este é caracterizado pela incompletude do devir de sua natureza pensamental. O pensamento pode portanto conceber um indivíduo humano livre, que não esteja preso definitivamente dentro de algum "sistema" social. Apenas esse indivíduo pode dinamizar as configurações sociais.

Por outro lado, se o social é encarado como uma totalidade homogênea e definitiva o indivíduo, como sujeito, pode ser considerado subversivo enquanto elemento que se opõe à coletividade. Essa contradição é dissipada quando, admitindo a realidade do ser, admite-se também todas aquelas qualidades do humano que o conduzem ao ser da responsabilidade e da razão. A principal função da razão é operar a equação das contradições, portanto assim, pela própria humanidade subentendida no exercício da razão, supera-se a contradição entre sujeito e coletividade pela construção social responsável. Há muito - desde o apogeu do Iluminismo - o direito fora postulado como um pilar da harmonia social expressando sob aspecto da “luz da razão”, a garantia da igualdade nesse plano, para que a liberdade individual, em seu próprio plano, pudesse se concretizar em qualidades específicas de talentos, traços e expressões da diversidade humana (complementarmente inclui-se também na herança iluminista o estado autoritário, o qual deve ser contrabalançado com o modelo “democrático de direito").

Nenhum humano prescinde da subjetividade. Por mais hipnotismos, repressões, irracionalidades, propagandas que existam, o fundo da subjetividade, como inteligência especificamente humana, identitária, não se extingue. E obviamente surgem da degradação dessa ideia os anti-humanismos, trans-humanismos, a bomba atômica, etc. Na contraparte, admitindo-se a constitucionalidade cósmica, tudo no homem é o outro. A própria consciência (como não cansam de assinalar os budistas), é sempre a consciência “de”. Assim, a identidade como reflexo da diferença, reverso do eu, é o próprio mecanismo consciente. Rejeitar o outro é negar a consciência; é a repressão do que “é”, do que existe. Os desdobramentos desse paradigma já foram assinalados através de outros ângulos na filosofia e na psicanálise, como indicamos acima. Trata-se de uma das elementaridades da questão filosófica da identidade a concepção da diferença, complementada pela repetição, como condição da forma e consequentemente da linguagem.

Supondo uma origem, um antes do aparecimento da linguagem, a percepção humana naquele ponto apreendera o todo indiferenciado; com a linguagem e sua estrutura dualística passa a discernir, num passo adiante, as diferenças. Justamente a história desse discernimento habilita o entendimento da unidade subjacente (unidade como potência) em qualquer área do conhecimento, a qual poderá ser refletida metaforicamente na convivência social como uma escolha da consciência. Por isso o entendimento do conceito de identidade, complementar correlativo ao conceito de diversidade, liga-se à faculdade de consciência e à capacidade de escolha, duas qualidades associadas à ideia de liberdade. É necessário admitir a liberdade como uma garantia de que as pessoas possam ser o que elas realmente são.

Mas se todas as ciências e linguagens já provaram a face do “mesmo” através dos caminhos da diferenciação em suas evoluções, por outro lado, claramente a maneira como as ciências e linguagens organizam a visão de mundo não favorece o embasamento lógico da igualdade no nível social porque tecnicamente esses saberes continuam produzindo suas especialidades. Essa diferenciação ao infinito é o próprio sentido da técnica.

Obviamente os valores tecnicistas, preponderantes na nossa época como parâmetros de toda a inteligência, não favorecem o entendimento do fundo metafísico científico como esclarecimento metafórico para a condição psicológica que capacita o entendimento da unidade de todos os seres humanos como uma atitude benéfica do ponto de vista do convívio social.

Imparcialidade, neutralidade a autonomia são valores científicos na medida em que fazem sentido no esquema sujeito-objeto. A luta identitária reivindica o reconhecimento do sujeito pelo próprio sujeito. Esses valores cientificistas, que embasam a nossa sociedade tecnicista, quando transpostos para o direito, só fazem sentido se o próprio direito for discernido como um setor totalmente especial, diferenciado, em relação aos setores econômicos e técnicos da sociedade.

O próprio reconhecimento identitário, reivindicando a igualdade entre os sujeitos, só pode ocorrer apoiado num discernimento de esferas independentes autônomas, neutras e imparciais na própria organização “científica” do estado, a qual reconhecerá as relações humanas no sentido sujeito-sujeito. Formalmente vê-se que o estado se apresenta justamente assim, mas na realidade vivida seu funcionamento é amorfo e confuso e a diferenciação de suas diferentes funções não é realizada.

A luta pelo reconhecimento das identidades nos aponta para esse discernimento faltante, ensejando a oportunidade de correção no sistema. A contradição aparente é que valores da diferenciação possam servir a valores da identificação. Ou seja, que os mesmos valores possam embasar objetivos, fenômenos psicológicos, políticos e técnicos, contrários uns aos outros.

Portanto, a questão da identidade, para ser reconhecida como politicamente válida exige uma inteligência que transcenda a ingenuidade dualística. Uma inteligência que perceba o dualismo como uma dinâmica da unidade. Ver o mesmo através da diferença é o desafio identitário. E nisso ele é totalmente humanista e intelectual, reivindicando a ética em sua raiz.

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