O músico e artista plástico Gil Duarte cria uma atmosfera instigante e singular feita de desenhos e imagens realizados com técnicas variadas em suas publicações nas plataformas digitais. Seu trabalho tem sido cunhado sob a expressão-projeto-autoria “Binário Armada”. Fiz algumas perguntas sobre isso e ele me disse várias coisas…
Luama Socio: O que significa a expressão “Binário Armada - Lendas Imaginadas”?
Gil Duarte: "Binário" vem da ideia de código binário 0 | 1 que geralmente é usado na linguagem digital dos computadores. A partir disso pensei que essa palavra poderia ser usada para uma junção de trabalhos meus com o de outros artistas. A palavra "Armada” remete ao termo de Marinha de Guerra ou à totalidade das forças de um Estado. Também está associada ao imaginário lendário, mítico, nordestino. Penso que essa totalidade seria como o conjunto de técnicas que utilizo em meus trabalhos. E "Lendas Imaginadas" são esses processos inacabados, que vão se formando, e que contêm várias lendas dentro deles.
Luama Socio: Muitos de seus desenhos nos remetem às imagens produzidas por povos desaparecidos na América do Sul, tais como os antigos habitantes da Ilha de Marajó ou então de Machu Pichu, com formas sempre pendendo para o retilíneo, linhas pronunciadas, mas também expressando um esforço calculado para o circular, sempre no sentido geométrico. Em muitos casos a geometria emerge como palimpsesto. De onde você tira a inspiração para essas imagens?
Gil Duarte:. Essas inspirações fazem parte de um processo que vem desde minha infância. Todas as ideias vêm de tempos antigos, visões de lugares, estudos que fiz na adolescência de símbolos, alquimia, sigilos mágicos, alfabetos de línguas mortas, civilizações antigas, polígonos, estudos de desenhos de geometria, grafismos indígenas e africanos. De uns anos para cá também resolvi olhar mais para os “parentes” do lado de lá na América Latina e Amazonas. Porém me dedico mais à história do cearense. Tanto dos povos indígenas, quanto do sertanejo, dos profetas perdidos sertão adentro, nas narrações nas rodas dos mais velhos, que se reuniam no fim da tarde e compartilhavam histórias de botija, fantasmas, bichos encantados, visagens…
Luama Socio - Parece que você deixa de lado as cores fortes. A ausência do brilho solar faz os desenhos soarem um tanto solenes, envoltos em uma atmosfera arcaica ou até mesmo de fóssil. O marrom, o preto, o branco, e às vezes o vermelho se destacam e isso também remete à arte de povos ancestrais, incluindo evocações africanas. O que a ausência e a presença de certas cores representam no seu trabalho?
Gil Duarte - No início desse trabalho não me dava bem com cores fortes ou com uma gama muito ampla de cores. Eu construo sempre uma textura antes de fazer os meus desenhos, e essa textura acaba sendo um limitador cromático. Hoje em dia eu uso várias cores, apesar de serem sutis. Principalmente por conta das casinhas… elas têm essas cores vivas, esses floreios vivos, e como nas minhas pesquisas tento ser um pouco fiel em desenhá-las, não posso me deixar tirar essas cores vivas, essas interações diversas, algumas vezes tão opostas. Mas confesso que é um pouco desesperador, porque eu curto manipular papéis com cores mais terrosas, cremes, em que eu posso colocar branco onde eu realmente achar que deve ter o branco. O branco acaba virando uma cor também, de destaque, e curto essa brincadeira.
Luama Socio: Em muitas imagens aparece uma “escrita”. Essa escrita, além de funcionar como uma ornamentação, um preenchimento de formas, também parece se constituir apenas de um significante enigmático, uma pura materialidade dúbia e fugaz. Tem-se a impressão de que não há significado, sons ou palavras nessa escrita, tudo parece apenas a simulação ou a forma de uma letra silenciosa. Às vezes a escrita parece inventada e às vezes é colagem de línguas estrangeiras. Qual é a mensagem que você tenta transmitir com esse tipo de escrita?
Gil Duarte: É uma linguagem que chamam de escrita assêmica, que comecei a desenvolver observando o pixo paulista. Os textos são como pensamentos. Estão lá. Se você colocar a lupa consegue ler. Tem muita coisa que nem lembro que escrevi, pois geralmente alguns trabalhos demoram mais de 30 dias para fazer. Há capítulos rabiscados em cada desenho. Mas também algumas composições de imagens escritas surgem do meu "Códex de Línguas Imaginadas". Em alguns processos trabalhei com elementos geométricos que acabaram sendo incorporados a um Códex. As ornamentações vieram das pesquisas de ornamentações de caligrafias. Já as colagens de línguas são texturas apenas. Eu uso papéis de livros para dar essa textura, para poder incorporar outras imagens ao meu trabalho. A parte enigmática sempre está lá porque as ideias chamam a atenção aos elementos que lembram a parte de alquimia dos meus trabalhos. Sempre curti esse lado enigmático dos tratados que eu buscava, tirava xerox e guardava no meu caderno de ideias.
Luama Socio: Então a colagem é uma técnica muito presente nas suas imagens. Como você descreveria a função e o significado da colagem?
Gil Duarte: As colagens sempre tiveram uma função de textura. Como se fosse uma camada de um processo de um arquivo num programa de edição de imagens analógico. São texturas que curto muito usar, se incorporam bem nas minhas imagens e acabaram se tornando uma parte importante no meu trabalho. Eu gosto de usar de tudo. Selos de cigarro, bebida, correios, pedaços de cédulas, certificados, notas fiscais, etc. Os selos me lembram muito aqueles documentos de cartório, representações de autenticidade, documentos históricos, etc. Acho que sem essas texturas hoje em dia, ficaria faltando algo.
Luama Socio: A música é lembrada nessas composições à medida que se evidencia pelas notas musicais presentes como elementos visuais. Mas além dessa evidência, qual é a conexão, sentida pelo artista, entre ouvido e olho?
Gil Duarte: Usei essa ideia de que a imagem poderia parecer uma partitura. Mas confesso que nesse caso não imaginei uma partitura em si, ou uma melodia que seja. Mas, de qualquer forma, seria impossível pensar que não há nenhuma influência do que escuto, nos meus trabalhos. Sou músico de formação e toco desde a infância, assim como desenho nesse paralelo temporal. Demorou pra entender que uma coisa não anula a outra. As duas se completam. O Gil Duarte Músico e Artista Plástico são parte do todo. Minha mãe pintava, meu pai desenhava e tocou uma época na banda de música do colégio. Tenho as duas coisas nas veias. Ainda brinco com minha família que sobrou para mim a aventura, já que eles nunca seguiram essas profissões. E no final das contas o ouvido influencia o olho. O que ouço muitas vezes vai para as obras. O ouvido escuta e a mão passa para o papel, muitas vezes pode ser uma canção, uma conversa no metrô, ou uma frase solta na mente… mantras invisíveis que vou escutando e aprisionando no papel.
Luama Socio: O rosto humano, depois o corpo, a escrita e casas sobrepostos a certa geometria são uma constante. Em alguns momentos vemos animais ou plantas. Como é o processo de escolha e definição de figuras nas composição das imagens?
Gil Duarte: Vai depender do que é a imagem como um todo no momento. A cena a ser montada. Teve uma série em que inseri animais, outra em que só coloquei os personagens, outra em que coloquei personagens com corpos e uma cabeça de exaustor de metrô, pois curto muito essas estruturas e voltei a usá-las nos meus trabalhos, como se fossem, ou cabeças, ou objetos, ou plantas. As casas têm a ver com uma coisa bem simples, mas que me marca muito: me leva de volta ao Nordeste. O fato delas estarem na cabeça representa o lugar onde se guarda todas as lembranças, vivências, experiências, todos aqueles com quem você conviveu. É na cabeça que está guardada toda a memória da sua vida e essa é sua casa. Você pode mudar de residência e ir pra outra, mas a sua casa real é você que leva consigo. Nós somos a nossa casa e a carregamos conosco para onde vamos.
Luama Socio: Você acha que suas preocupações políticas se refletem nas imagens?
Gil Duarte: Escutei num workshop a artista Laura Belém dizer que “qualquer gesto artístico é um gesto político". Partindo dessa ideia imagino que as coisas que faço têm estas questões inseridas, mas elas são sutis. Ultimamente meu trabalho é bem voltado para as culturas indígena, negra, popular nordestina. Sinto que isso abre essa ideia política. O desaparecimento de antigas práticas, a chegada desenfreada das tecnologias pelas cidades do sertão, violência, o desaparecimento de certas tradições culturais, tudo isso acaba virando um caldeirão de elementos que vão sendo jogados nos meus trabalhos. O “Lendas Imaginadas” é todo voltado nesse lance da "Guerra dos Bárbaros" que foi uma revolta de índios, negros e homens livres que durou 30 anos e se estendeu por diversas regiões do nordeste. A guerra, a morte dos indígenas, o extermínio de sua cultura, de sua história, sua religião, a imposição do cristianismo sobre a adoração dos "Encantados". Tudo isso é parte do jogo. E também é difícil não ser influenciado pelo cotidiano e não inserir algo. O que não uso de forma alguma é a questão política direta, pois não me sinto à vontade de ser tão direto utilizando a arte. Gosto dos jogos e da brincadeira de decifrar o todo. "Decifra-me ou te Devoro”, dizem todas as minhas obras. Algo sempre estará lá. Basta perder um tempo na viagem que está rolando.
Gil Duarte
É músico e artista plástico nascido em Fortaleza, Ceará, radicado em São Paulo, formado em Produção Musical Fonográfica pela Universidade Anhembi Morumbi, integrante da banda Aláfia, Craca Beat e Dani Nega e Sistema Asimov de Som. Atua com seu projeto artístico “Binário Armada” que também se agrega a trabalhos de montagem de pequenas trilhas, vinhetas, pequenos filmes, ilustrações e esculturas.
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