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  • Foto do escritorLuama Socio

Isso é questão de cultura


A palavra cultura, assim como qualquer outro termo geral usado para significar uma ideia abstrata ou conceito, obviamente pode ser empregada para múltiplos significados, porém proponho uma reflexão sobre qual ideia de cultura se tem quando se usa essa palavra como um substantivo que designa algo que se pode ter ou não ter. Ter ou não ter cultura em nível individual, ter ou não ter cultura em nível social, ter ou não ter cultura em nível de política de Estado. E, num passo a mais, tentarmos perceber as relações e contradições implicadas na ideia que temos dessa questão.

Dizemos que alguém tem cultura quando nos referimos a uma pessoa educada, estudada, ilustrada. Essa três condições são diferentes entre si, mas são geralmente suficientes para servirem de significado para determinar se alguém tem cultura ou não. Sobre a cultura em nível social, temos aprendido que cada grupo, comunidade, etnia, nação, tem seus próprios costumes, sistemas de símbolos, valores e formas de representação que compõem seus sinais identitários, ou seja, cada grupo tem sua própria cultura. E, politicamente, que existem, no aparelho do Estado, os departamentos, secretarias e ministérios, dentre eles o da Cultura. Associamos as atividades desse departamentos com ações governamentais de proteção e incentivo, basicamente, aos artistas e intelectuais.

Isso posto, logo percebemos que o nosso indivíduo "culto" deve ser a personificação daquele construto ideal das nossas práticas escolares, oriundas dos ideais iluministas, portanto modernos, sobre os quais, como muito bem lembra o professor Alfredo Veiga, “basta pensarmos acerca de quem eram os arquitetos da Modernidade - brancos, machos, eurocêntricos, colonialistas, burgueses, eventualmente cristãos (…) para que nos demos conta das marcas que eles imprimiram ao modelo de sujeito que impuseram ao mundo”.

Ao passarmos agora para a ideia de cultura relacionada ao nível da questão social, percebemos uma multiplicidade de objetos, fatos e valores contraditórios, os quais nos acostumamos abarcar sob o conceito de cultura e que, de alguma forma, “sentimos” ou imaginamos que compõem uma unidade respaldada por sua vez através de uma vaga noção de “identidade”, talvez provocada pela proximidade espacial e temporal desses elementos múltiplos. Depois de Foucault, as pessoas que pensam sobre a questão da cultura têm como alternativa conceitual estabelecer o fundamento das reflexões sobre a cultura sob o conceito de “discurso”, tal como faz Stuart Hall, que afirma que “uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (2005, p. 50).

Nesse sentido então, é possível abarcar sob o conceito de cultura, uma coisa tal como o crime. Exemplo disso é a campanha feita na rede social mais utilizada pela internet dizendo “não à cultura do estupro”, ou então em nível de representação literária, num romance tal como “Mundo Perdido”, de Patrícia Melo, analisado por Glaucia Mirian Silva Vaz como um discurso que aponta para “a hipótese de relação entre a identidade do brasileiro e a criminalidade, exemplificada no trecho: Aqui no Brasil, se você quer ser alguma coisa na vida, tem que roubar, tem que ser ladrão. Todo mundo rouba.”

A relação aparentemente contraditória entre esses dois sentidos de cultura - o sentido atribuído ao construto do sujeito individual e o sentido atribuído ao discurso da identidade social como representação da cultura - pode ser refletida, segundo o professor Alfredo Veiga, pela consideração de que o Iluminismo criou uma imagem “de unidade do espaço social, do sujeito, do conhecimento, da cultura, etc. (…) e que a Modernidade se articulou na busca dessa unidade, de modo que acabamos percebendo a realidade como unitária”, quando na verdade não é assim.

Considerando que é impossível conceber a identidade individual fora do grupo social, o professor Alfredo Veiga escreve: “Sendo todo esse processo altamente dinâmico (…) cada indivíduo está exposto a muitas e variadas situações de interpelação, cujo resultado produz sujeitos que têm pouco a ver com aquele idealizado pelo Iluminismo - que seria o centro de uma identidade única, estável, permanente. Como explica Hall, a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados com uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar ao menos temporariamente”.

Por sua vez, a cultura, na acepção de um elemento constitutivo da política de Estado sob a forma de um setor específico do poder executivo, surge no Brasil no período Vargas e se prolonga até os dias atuais, ora vinculando-se ao setor da Educação, ora aos interesses das corporações da indústria de entretenimento (cinema, rádio e televisão), imprensa e editoras; e ainda com o mapeamento de atividades culturais “tradicionais”; algum incentivo a produtos específicos (como a lei Rouanet); e a realização de eventos culturais de permeio. A pesquisadora Lia Calabre, da Fundação Casa de Rui Barbosa escreve, referindo-se à historicidade dessa questão até o governo FHC: “No Brasil não temos tradição de realização de estudos de políticas públicas, em especial em áreas como a da cultura. (…) Verificamos uma série de iniciativas (…) que inúmeras vezes foram abandonadas e retomadas com pequenas alterações por governos que se seguiram uns aos outros”.

A partir do governo Lula parece que houve uma preocupação de incrementar e ampliar os conceitos de cultura pelo Ministério da Cultura, incluindo um esforço para diminuir o “autoritarismo” das hegemonias culturais, as quais deduz-se dos valores “iluministas” e também “liberais”. Incluiu-se uma maior diversidade cultural no âmbito do foco das ações do Estado, e também houve um esforço em direção à proteção e incentivo dos criadores de arte e de saberes. E mesmo que na prática uma maior sistematização do setor cultural pelo Estado não tenha promovido grandes avanços, em 2016 todas essas tentativas de consolidação do conceito de cultura em nível de política de Estado estão em processo de desmoronamento no contexto do “impeachment” do último presidente (Dilma Rousseff).

O caso é que, de maneira geral, o senso comum identifica a questão cultural - no âmbito de políticas públicas -, com a proteção, benefício e incentivo do Estado a artistas. E como se sabe, se o conceito de recurso econômico está associado aos conceitos de necessidade e utilidade, a arte está associada - desde os inícios filosóficos de seu termo - à inutilidade.

E se justamente durante o Renascimento as “artes mecânicas” tenham adquirido, aos olhares históricos, um estatuto de utilidade, por participarem do desenvolvimento de saberes relacionados às técnicas que permitiram os engenhos da modernidade, vemo-nos hoje num cenário que faz perdurar os modos artísticos renascentistas como essa arte “autoritária” e “elitista” - muitas vezes a única a ser considerada oficialmente como algo que possa ser chamado “cultura” pelo senso comum - colocada em xeque quanto à sua “utilidade”. Pois essa arte, em sua forma repetitiva nos modos renascentistas, também já se tornou obsoleta em sua utilidade técnica, embora ainda possa ser considerada desejável como instrumento educativo para as crianças. Segue-se que ainda perdura também, vagamente, essa noção da potencialidade da arte como alavanca para novas descobertas técnicas “úteis” em âmbitos diversos, mas isso não aparece claramente, nesses termos, como elemento relevante no juízo prático para se avaliar a questão da cultura em nível do senso comum.

Em complemento a essa questão, a arte, sob a forma de “produto cultural” só é considerada pelo senso comum como algo de valor, quando submetida à mesma lógica de mercado que as outras mercadorias, ou seja, têm o seu valor agregado de acordo com a aceitação, promoção, divulgação e distribuição regulada pelas grandes corporações que controlam o consumo de massa.

Nesse ponto agregamos o pensamento do filósofo Bauman, que diz que a cultura “se transformou de estimulante em tranquilizante; de arsenal de uma revolução moderna em repositório para a conservação de produtos”. E por outro lado, “em tempos líquido-modernos a cultura (…) é modelada para se ajustar à liberdade individual de escolha, e à responsabilidade, igualmente individual, por essa escolha”.

Por ocasião de um protesto político organizado pelo Teatro Oficina reivindicando a “volta” do Ministério da Cultura, extinto pelo presidente provisório Michel Temer em Maio de 2016 (e “desextinto” alguns dias depois), a filósofa Marilena Chaui fez um bonito discurso, lembrando o sentido de “futuro” embutido no conceito de cultura. Então nos lembramos da explicação de Alfredo Bosi sobre a etimologia da palavra cultura: “podemos falar na cultura do arroz, na cultura da soja, na cultura do trigo, entendemos muito bem que é uma terra cultivada; falamos em cultivo (palavra também derivada de colo) e mais ainda, com frequência, usamos a palavra cultura na acepção ideal, que é muito rica, porque traz dentro de si, na forma verbal terminada em -ura, a ideia de futuro, de projeto”.

Assim, à guisa de reflexão final, propomos pensar na questão da cultura a partir da seguinte pergunta: “o que estamos cultivando?”.

Foto: Walter Antunes

BAUMAN, Zygmunt. “A cultura no mundo líquido moderno”. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Jorge Zahar Editora, 2013.

BOSI, Alfredo. “A origem da palavra cultura”. https://pandugiha.wordpress.com/2008/11/24/alfredo-bosi-a-origem-da-palavra-cultura/

CALABRE, Lia. “Política Cultural no Brasil: um histórico”.

www.cult.ufba.br/enecul2005/LiaCalabre.pdf

FERREIRA, Rilce Maria Rocha Aguiar. “Da arte e sua utilidade”.

http://revistapandorabrasil.com/revista_pandora/filosofia_34/rilce.pdf

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10 ed. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

RUBIM, Antonio Albino Canelas (Org.). Políticas culturais no governo Lula.

http://hugoribeiro.com.br/biblioteca-digital/Politicas-culturais_governo_Lula.pdf

VAZ, Glaucia Mirian Silva Vaz. “A identidade enquanto dispositivo de banalização do crime: uma análise de posições-sujeito sobre criminalidade” in MARQUES, Welisson e vários/organizadores. Michel Foucault e o Discurso: Aportes teóricos e metodológicos. Uberlância: EDUFU, 2013.

VEIGA, Alfredo. “Michel Foucault e os estudos culturais”. http://www.lite.fe.unicamp.br/cursos/nt/ta5.1.htm

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