
Ficar absorto na leitura é diferente de ficar espalhado entre várias janelas ao mesmo tempo no computador. O livro torna visível um esforço de concentração que todos sabem ser experiência saudável ao ser humano de todas as idades. A atitude de ler é identificada com a prática de recolhimento, de sustentação do foco de atenção.
Uma vez ouvi o escritor de livros infanto-juvenis, Dionisio Jacob, responder a seguinte coisa a uma adolescente do oitavo ano que lhe perguntou o que fazer para aprender a gostar de ler: “o momento da leitura é um momento só seu. Quietinha, com o livro na mão você está vivendo um momento íntimo, sem mais ninguém interferindo. Quando você aprender a gostar de ficar assim talvez você terá aprendido a gostar de ler”.
Isso me lembrou o que a escritora Lygia Bojunga Nunes falou sobre a sua experiência com o primeiro livro que “amou”: “Lá em casa eles me viam tão entregue a esse livro (Reinações de Narizinho), tão quietinha num canto, só eu e o livro, que eles me deram, correndo, uma porção de Lobatos. Eu li; eu experimentei eles todos; eu curti”.
Voltei no tempo, lembrei-me menina, lendo Júlio Verne, Monteiro Lobato, José Mauro de Vasconcellos, Maria José Dupré, Mark Twain, o Tarzan, etc... numa atividade insubstituível, sem que deixasse de me divertir com outras coisas como TV, bicicleta, bola, piscina, bonecas, casinhas...
Nem precisaria me distanciar tanto no tempo para justificar o prazer da leitura. Hoje em dia continuo tendo, entre as coisas que mais gosto de fazer, a leitura. Até tornei-me mestra em literatura.
O exemplo em casa, do valor da leitura, também é uma coisa importante. Se não o exemplo do hábito de leitura constante, coisa que nem todo mundo tem, é importante pelo menos os adultos exemplificarem a valorização do livro, através do incentivo aos filhos que estão na escola, a ler. Achar que os livros são necessários, mas apesar disso não usá-los, ou não recomendar o seu uso, fazem a necessidade vã.
Na escola, o professor se encarrega da responsabilidade também pelo exemplo. Professar a leitura é uma das missões dos professores de Língua Portuguesa, disciplina que engloba ensinamentos referentes a língua, comunicação e literatura.
As estratégias de incentivo à leitura na escola são muitas. Geralmente são delineadas desde o início por um trabalho de grupo, envolvendo direção da instituição, coordenadores e professores. Essas estratégias se diversificam nas salas de aula, onde cada professor acrescenta outras ações no decorrer dinâmico do ensino e aprendizado. Enfim, a escola deve se esforçar em formar um cidadão que lê.
Um exemplo de ação diversificada de leitura que tive oportunidade de colocar em prática, com sucesso, durante o tempo em que fui professora de alunos do ensino médio, foi uma ação baseada no conceito de “biblioteca ideal”. Trata-se de uma estratégia simples, mas eficaz, quanto ao objetivo de aumentar o contato efetivo dos alunos com os livros: ao invés dos alunos lerem todos o mesmo título ao mesmo tempo, cada um lê livros diferentes dos outros, escolhidos por eles mesmos ou determinados pela professora, entre títulos de uma lista (biblioteca virtual) selecionada pela professora. Os títulos são todos disponíveis na própria biblioteca da escola. Dessa forma, além de ler, os alunos trocam informações sobre o que estão lendo e espontaneamente despertam o tema da leitura como assunto que vivenciam. Falam mal, falam bem, indicam, não indicam a leitura, uns para os outros, etc.
A idéia dessa ação me surgiu inspirada por Ítalo Calvino em seu livro Por que ler os clássicos. Depois de dar quatorze razões para a leitura de obras clássicas ele diz: “Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos; e diria que ela deveria incluir uma metade de livros que já lemos e que contaram para nós, e outra de livros que pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar. Separando uma seção a ser preenchida pelas surpresas, as descobertas ocasionais”.
O que mais me chamou a atenção nessa invenção de Calvino é que a “biblioteca ideal” tem a particularidade de evidenciar o paradoxo do aumento da consciência da ignorância concomitante ao aumento da sabedoria.
Traduzindo para a pedagogia a idéia de Calvino, coloquei em prática a biblioteca ideal pela primeira vez depois do comentário de um aluno: “Professora, para que serve ler um livro velho?” Eu respondi: “se um livro dura tanto tempo é porque ele tem um grande valor, por isso muitas vezes os livros mais velhos são os melhores. Se um livro antigo é lido nos dias de hoje é porque seus signos são tão importantes que resistem até mesmo ao tempo.” O aluno ainda não havia compreendido o valor transcendental do livro. O aspecto do objeto-livro, de papel, com capa e folhas novas ou velhas era a sua principal idéia de livro.
Numa outra ocasião, outro aluno perguntou para mim referindo-se à proposta de leitura de Os Lusíadas: “Professora, a senhora tem certeza de que vai ser bom para mim, para a minha vida, ler esse livro?”. Respondi a ele nos termos de Calvino, que nos diz o seguinte a respeito dessa questão: “as leituras da juventude (...) podem ser formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza; todas coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude”.
Pode-se citar inúmeros motivos de sustentação do valor da leitura, como o de Thoreau, por exemplo, que defende o acesso aos saberes através do livro como fonte de autonomia política, postura parecida com a de Evando dos Santos, pedreiro de profissão, de origem sergipana, que fundou uma biblioteca na Vila da Penha, o bairro pobre onde mora no Rio de Janeiro, e conseguiu um projeto de Oscar Niemeyer para a construção do prédio de sua biblioteca: “Livro para mim é vida. A leitura traz liberdade para o ser humano”, disse Evando, na época da divulgação, pela grande mídia, da sua iniciativa, há alguns anos. Liberdade, diga-se de passagem, já postulada pelo grande educador Paulo Freire.
Outros argumentos frequentes são: aumento do vocabulário, que equivale, mais ou menos, ao aumento dos horizontes do pensamento, pois o homem pensa, em grande parte, através de palavras; manutenção e criação da cultura; ligação estreita com a capacidade de escrever; consequentemente aumento das potencialidades de percepção, expressão e compreensão do mundo como um todo e de suas lógicas.
No entanto todos esses argumentos estão relacionados a um fato concreto, a um comportamento específico: a atitude de ler. Minha sugestão para colocar em prática esse comportamento é substituir parte do tempo dedicada às telas do computador e da televisão pelas páginas de um bom livro. Pratiquemos um pouco de solidão e liberdade.
Então... comecemos a leitura.